quarta-feira, 7 de abril de 2010

O PAPEL DA ESCOLA SEM PAPEL





Passados 30 anos, desde o dia em que pus os pés em minha primeira escola pública, na condição de professor, a força das reminiscências, volta e meia, empurra-me para o registro de fatos e rotinas que não sofreram modificações substanciais capazes de contribuir para a decantada melhoria exigida pelas populações mais empobrecidas desse País. E não estamos falando de novas reivindicações. A maioria delas já constava das pautas dos Pioneiros da Educação desde a primeira metade do século XX. É evidente que, por conta dos avanços da ciência e da tecnologia, aos conteúdos foram agregados novos valores, mas, em essência, tratamos, ainda hoje, dos mesmos objetos de desejo pedagógicos que estavam na ordem do dia dos Pioneiros.





Dentre todos os pontos, um deles, há anos fazendo vítimas e deprimindo egos (e não se trata de simples exercício de retórica) chama atenção pela forma como vai se repetindo de escola em escola, por cada canto desse País, fazendo com que a qualidade de seu erro, ao invés de encontrar opositores, vá arrebanhando defensores ferrenhos para uma causa que, segundo os preceitos da boa higiene, não teria a minha chance de conquistar adeptos entre uma categoria de profissionais, majoritariamente feminina: A falta de papel higiênico nos banheiros das escolas públicas de ensino fundamental e médio.





O que a mim causa perplexidade, é o fato de que sempre que o assunto vem à tona, aparece um tímido defensor ou uma tímida defensora do gesto atroz, e as coisas vão ficando como sempre estiveram. O argumento mais simples (do Rio de Janeiro, capital cultural do País, ao município de Viana no Maranhão) é sempre o mesmo: Não colocamos papel higiênico nos banheiros porque meninos e meninas entopem o vaso sanitário! Cabe ainda ressaltar que em algumas escolas da nação que se engalfinha pelos milhões do pré-sal, ainda tem muito banheiro sem essa coisa surreal chamada vaso sanitário. E para aqueles que vivem a se espantar com os exageros da desgraça, a Rede Globo de televisão está cansada de mostrar escolas sem tetos e paredes. Ora, se o que restou como proteção para as crianças foi uma placa com o nome dos familiares do Prefeito ou do Governador, aonde é que elas fazem as suas necessidades fisiológicas?





A desculpa em itálico agrega todas as outras falas vis justificando o ato que deseduca e contraria os princípios da boa pedagogia que vê a escola como um espaço educativo globalizante. Ao confinar os objetos que causam incômodos aos funcionários, a escola perde a oportunidade de ensinar àqueles que não tiveram oportunidade de aprender, em seus lares, os hábitos básicos de higiene. E se não conseguimos fazer com que meninos e meninas desenvolvam esta forma de consciência, para que uma grade enriquecida de conteúdos científicos? Para que aqueles monstruosos livros que tratam de temas como reprodução humana e aparelhos excretores, se a escola não é capaz de dizer para o menino ou a menina que o rolo de papel higiênico não foi feito para ser jogado dentro do vaso sanitário?





Não estou fazendo aqui uma defesa simplória de que o papel da escola seja o de também tomar para si as responsabilidades que cabem aos pais, mas ela também não pode confinar o papel que dá, principalmente, às meninas tranqüilidade e evita o desconforto de ir à secretaria pedir a uma pessoa (que para piorar, pode ser do sexo masculino) um pedaço de papel para sua higiene mais íntima. Cada um de nós sabe o quão vexatório é este gesto. Eu, particularmente, nunca me submeti à infame prática. Nas horas de intensa necessidade quem sofria era o caderno. Quantas folhas foram utilizadas para a higiene compulsória?





Algumas crianças se valem de outros expedientes, mas o mais comum é o condicionamento do intestino para que ele só se manifeste nos horários em que o indivíduo possa estar em casa. No entanto, resta um problema: como os sensores neuro-fisiológicos não conseguem distinguir a escola de outros prédios, de outros lugares, cresce a legião de entes-vasófobos, seres portadores de uma nova doença psíquica que ataca àqueles que têm medo dos vasos sanitários não pertencentes à sua própria casa. Não usem esse termo horrível porque ele não existe. Criei porque não sei ainda como denominar as pessoas que guardam, por até cinco dias, os excrementos em suas barrigas endurecidas.





Os blogs médicos que cuidam do assunto referem-se à doença como um hábito compulsivo causado por algum tipo de repulsa a ambientes muito sujos. Para atenuar o problema, os responsáveis pela maioria dos sanitários públicos americanos eliminaram as cestas de papel que ficavam ao lado dos vasos sanitários. Mas o problema não é da cesta. Ele foi gestado em idade mais tenra, possivelmente lá pelos idos da pré-escola.





Também não quero cometer exageros achando que tudo é culpa do papel higiênico, mas uma boa parte das pessoas que adquiriu essa péssima mania foi aluno ou aluna da escola pública. Meninas e meninos, há anos recebendo conselhos de seus indefesos pais para que não usem o banheiro morfético e repugnante da escola de ensino fundamental, vão aprendendo, também, a não ir ao banheiro das casas dos amigos, da igreja, das pousadas, dos hotéis.





Sabemos que existem outras causas para o medo dos vasos dos hotéis (neste caso o número de estrelas não tem a mínima importância), mas devemos considerar que a falta do papel higiênico para as crianças em plena formação da personalidade deixa a sua parcela de contribuição. É grande o número de pessoas que não usa vasos sanitários estranhos e a comunidade vasófoba não para de crescer. O ato repulsivo, que de início era uma simples postergação do momento em que a pessoa deveria evacuar, vai se tornando habitual e gradativamente assumindo ares de doença, agora com uma infinidade de nomes, causas e formas de tratamento.





Essas considerações servem também para alertar as escolas sobre a necessidade de manter um estoque razoável de absorventes íntimos. A mulher foi buscar, na última metade do século XX, o que lhe foi negado na primeira. Em várias instituições de ensino o número de mulheres já é maior do que o de homens. Assim sendo, devemos considerar também que aumentou sensivelmente a probabilidade de que várias primeiras menstruações aconteçam dentro da escola que deve acolher a nossa nova mulher com todo o aconchego das menarcas tribais quando do sublime e indescritível milagre do aparecimento de uma nova produtora de criaturas. Ademais, não fica muito bem para a escola deixar que a menina vá declinar o seu desapontamento no portão da instituição e pedir o seu absorvente primeiro ao pipoqueiro que, cotidianamente, ocupa um pedaço da calçada externa, bem em frente ao portão principal (delírios). Em casos de falta de afeto, dê lírios.





Para além das questões factuais, poderíamos elencar uma série de procedimentos capazes de solucionar o problema, mas os mais eficazes ainda são as perenes formas de conscientização. No entanto, em vários projetos de escola, precisamos de soluções mais duras. Chegamos, em uma deles, a criar um plantão de banheiro e a organizar uma escala semanal de lavagem dos sanitários, pelos alunos, com a anuência dos pais. O que não podemos é retirar os rolos de papel sanitário como uma represália ao proposital ato do entupimento. Isto dá ao incauto (a) o prazer que ele (a) precisava para seguir cometendo atos de vandalismo na solidão das casinhas sanitárias. Para as meninas, somente o ato de dar a elas a oportunidade de decorar o seu próprio banheiro com flores, sabonetes, toalheiros e espelhos, faz com se sintam mais responsáveis pela manutenção dos novos objetos. Da mesma forma a ampliação do número de mictórios, a instalação de chuveiros e de vasos sanitários, e a colocação de novos espelhos, podem funcionar como uma premiação pelo bom comportamento e pelo zelo com os materiais de higiene postos à disposição de todos.





Mais uma vez é preciso considerar que o meu costume de escrever sempre sobre os problemas da escola pública deve-se à facilidade de dissertar sobre algo que a mim é muito pautável. Sempre fui professor de escola pública de ensino fundamental e médio. Nem a curta carreira universitária afastou-me da meninada que, ainda em minha adolescência, escolhi para ensinar e que ainda hoje funciona como principal fonte de inspiração das coisas que ao longo desses trinta anos venho escrevendo. Já a escola particular, pode até cometer falhas como as inúmeras citadas neste artigo, mas as cobranças dos pais pelo zelo com os seus rebentos, por óbvias razões, é um pouco maior: Estou pagando para que o meu filho seja bem tratado!





O que está implícito nesta forma equivocada de educar é a procura por caminhos menos tortuosos. É muito mais simples desaparecer com os objetos que dão trabalho ao corpo profissional da escola. Suprimem-se as laranjas porque as crianças jogam as cascas umas nas outras. Suprimem-se as tintas pela lambança que fazem sobre as mesas. Suprimem-se os instrumentos musicais porque eles são barulhentos demais. Suprimem-se os brinquedos porque, com eles à vista, os alunos não pensam em outra coisa. Mais recentemente começaram a colocar cadeados nos balanços dos playgrounds infantis e a deitar nos armários com chaves as cordas para pular que a molecada usa para queimar as energias consumidas na hora do recreio.





A pedagogia do confinamento é, em última instância, um ato diretivo, mas está longe de poder ser atribuído somente às direções escolares. Trata-se da prática que emerge de uma visão coletiva e que, na maioria das vezes, acontece com a concordância dos próprios pais. Algumas formas causam menos estragos; outras, como a retirada do papel higiênico do alcance das crianças, seguem produzindo danos irreversíveis aos corpos físicos e psíquicos da criançada que ocupa os bancos da escola pública brasileira. Esta não é uma questão de fácil solução, mas ainda há tempo para mudar.

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