sexta-feira, 25 de junho de 2010

OBRIGATORIEDADE DO ENSINO E FRACASSO ESCOLAR





Uma das mais interessantes fábulas que li em meus tempos de menino versava sobre a velha luta entre o bem e o mal, representados, naquele texto, por Deus e o Diabo. Contava a pequena história que Deus caminhava por uma longa estrada cheia de poças d’água quando ouviu gritos de socorro. Era o Diabo que pedia para que alguém o tirasse do imenso buraco em que se encontrava com água até o pescoço.



Deus, olhando para aquela coisa doida, suja e esfarrapada, perguntou-lhe: Você acha mesmo que merece ser salvo? No que o Diabo respondeu perguntando: Merecer eu não mereço. Mas você já pensou como vai ficar a sua vida após a minha morte? E continuou: As pessoas vivem atrás de você porque têm medo mim. Eu morrendo, qual será o seu trabalho? De que viverás?
Deus pensou um pouco, retrucou, ponderou, mas preferiu não sustentar o infame diálogo. Em seguida, deu as mãos ao seu mais temido opositor que, às gargalhadas, desapareceu envolto em uma nuvem de deboches.



Essa história que nada tem de original (existe pelo menos mais uma dúzia com o mesmo sentido) serve para ilustrar inúmeras situações da vida pública brasileira onde o mal prevalece para garantir a sobrevivência de determinados coletivos corporativos que se locupletam nas dores de outrem. A fome, a seca, o voto obrigatório, a pobreza, o analfabetismo, o abandono da escola pública, a perene crise da saúde, etc.



Os surripiadores da pátria aprendem pelas escolas da tirania que algumas coisas devem ser mantidas como estão no sentido de garantir os bons salários dos mais espertos. Vejam como sempre por trás de um orfanato de miseráveis tem sempre uma senhora de cabelos azuis montada em uma caminhonete de luxo. Vejam como chegam às empobrecidas comunidades os bem nutridos e paparicados coordenadores de projetos assistencialistas bancados com o dinheiro público. Vejam como se proliferam as organizações não governamentais que se propõem a cuidar do destino dos miseráveis, agora utilizadas pelo Estado como laranjas para a distribuição de verbas que poderiam ser entregues diretamente àqueles que precisam. E se de repente toda essa miséria acabasse, de que viveria essa legião de aproveitadores da desgraça alheia? Construiu-se no imaginário da sociedade a necessidade de que, para o nosso bem, devemos aprender a conviver, entre deuses e demônios, com o bem e com o mal.



Fazendo parte do conjunto das diabruras terrenas, estão as obrigatoriedades que nasceram tendo como justificativa a incapacidade do povo para escolher o que de melhor existe para si próprio. Nesse aspecto, as mais visíveis e que ficaram como herança de várias ditaduras são o voto obrigatório, o serviço militar e a obrigatoriedade do ensino. O primeiro baseado no medo que as classes dominantes têm de que ninguém vá indicá-los para ocupar os postos destinados aos melhores aquinhoados; o segundo visando à garantia da soberania nacional e a última justificada pela incapacidade dos pobres em discernir sobre o que é melhor (ou pior) para as suas proles. Três grandes equívocos. Quantos pais tirariam seus filhos da escola se ela não fosse obrigatória? Quantos deixariam de ir votar se o voto não fosse obrigatório? Quantos deixariam de servir à pátria? Não temos respostas para essas perguntas, mas creio que já estamos suficientes maduros na democracia para este tipo de reavaliação. Ingenuamente, pensamos que, à medida que o tempo passa, aprenderemos a não votar em políticos da estirpe de José Sarney. Outro engano, a maioria dos que votam em José Sarney o faz porque se parece muito com ele, inclusive nas atitudes.



Falo sobre todas essas coisas da vida pública para dizer que sou contra as obrigatoriedades para aqueles que demonstram ter adquirido capacidade de escolha. Sermos obrigados a fazer o que não gostamos, talvez seja a maior contradição da democracia. Todos sabem da confusão que deu no Rio de Janeiro do início do século XX quando o governo mandou vacinar a todos, levando para a cadeia os medrosos e inconformados com as agulhadas nas nádegas. Este episódio ficou conhecido como a revolta da vacina e talvez seja o mais pitoresco e conhecido ato governamental sobre o corpo alheio. No entanto, ainda consumimos o nosso tempo fazendo coisas que a nós não interessa, apenas para satisfazer aos caprichos de um estado que deseja ser democrático, mas ainda age de forma bastante autoritária. Uma parte manifestada na figura compulsória dos tributos, outra, segundo os ditames da lei, para zelar pelo nosso bem estar social.
Somos obrigados a prestar serviço militar, somos obrigados a ir para a escola em certa idade de nossas vidas, somos obrigados a lutar em guerras por causas que a nós não dizem nenhum respeito, somos obrigados a respeitar os símbolos da pátria mesmo quando esses símbolos estão manchados com o sangue de nossos irmãos, somos obrigados a votar, mesmo quando os candidatos têm as mãos mais sujas do que limpas, etc.



A obrigatoriedade do ensino nas leis brasileiras é muito recente e foi estatuída por consenso parlamentar visando à proteção da infância, certos estavam os legisladores da incapacidade de seus pais em cuidar de tão nobre missão. Por isso, o governo além de construir as escolas e organizar os sistemas, deveria obrigar os pais a levarem os seus filhos até ela.
Com o tempo, no sentido de amenizar as dores da obrigação, apareceriam compensações para aqueles que se comportassem bem. Hoje, na entrada do século XX, são tantas as benesses escravagistas às quais se submetem pais e alunos que a eles não restam alternativas, senão suportar as ladainhas pedagógicas justificadoras das migalhas dadas pelo estado visando à sobrevivência dos filhos do proletariado.



Pensavam os que defendem o paternalismo estatal, que esta forma de compensação pudesse aplacar a ira dos revoltados, mas não é isto que vem acontecendo. Cresce nas grandes cidades o desperdício com investimentos em crianças, adolescentes, jovens e adultos que não enxergam vantagem alguma em estar ouvindo as histórias contadas pelos seus mestres. Nas crianças e nos adolescentes pelo fato de pais, mães e tutores terem imensa dificuldade de perguntarem a seus filhos se querem estudar, trabalhar ou não fazer nada. Nos jovens e nos adultos, pelas pressões do mercado de trabalho a lhes exigir pelo menos aquilo que começamos a chamar de diploma social elementar. Criou-se, para este segmento etário, uma estreita ligação entre escolaridade e trabalho legalizado.



Essa decisão não é muito fácil, porque assim nos acostumamos. Deixar a escola por um tempo é muito doloroso. Eu passei por essa experiência com um nó na garganta. Meu filho mais novo, lá pelos seus 13, 14 anos via a escola como um pesado fardo a carregar. Quando veio a primeira reprovação eu perguntei-lhe se queria dar uma parada e ele disse que não, mas resolveu se matricular em uma escola que lhe cobrasse um pouco menos que a sisuda escola confessional. Nesse ínterim, aprendeu música e se apaixonou pela geografia, as duas paixões de sua vida de agora.



Estou contando essa secreta história familiar para que não digam que a minha proposição pode atrapalhar a vida dos mais pobres. Algo semelhante aconteceu com o casal Eduardo e Martha Suplicy. João Supla, o filho cantor, muito cedo disse aos pais que não gostava muito dessa vida de doutores, de parlamentos e academias. Nem por isso ouvimos queixas de sua família tangentes à felicidade de seu roqueiro. Ao contrário, o que vemos de vez em quando é o pai, velho e bom Senador, sorridente em seus shows, orgulhoso e certo de que, ter deixado a critério do filho a escolha de seu próprio caminho, foi a melhor opção.



Também sei que o fato de vários países do primeiro mundo sustentarem a tese da obrigatoriedade do ensino nos intimida a caminhar em sentido contrário. Ainda assim, creio que devêssemos experimentar. Primeiro com aqueles que estão em permanente conflito com as instituições, dando-lhes a oportunidade do aprendizado profissional ou de outra realização que temporariamente possa lhes fazer mais feliz. Cabe à escola manter as portas abertas para o acolhimento do filho pródigo, mas a decisão de entrada ou reentrada dos alunos deveria ser facultativa a partir de uma determinada idade e que a meu ver poderia ter como base a maturidade biológica. Isto implicaria em uma reorganização das fases do ensino fundamental, a primeira terminando por volta dos 12 ou 13 anos de idade.



A esta altura o leitor já deve estar se perguntando: Mas onde está a relação entre Deus, o Diabo, a obrigatoriedade do ensino e fracasso escolar? Ora, se considerarmos que à escola deixarão de ir aqueles que para ela vão empurrados, abrir-se-á espaços para os 5% que ainda estão de fora querendo entrar e, em tese, reduzir-se-ão, os índices de reprovação e de distorção série/idade, já que os que para ela forem, por livre e espontânea vontade, deverão apresentar melhores rendimentos do que os que lá estivessem pelas pressões dos pais e das políticas assistencialistas. É bem verdade que as razões do fracasso não estão somente na obrigatoriedade, mas uma escola organizada para os que sentem prazer em estar nela (alunos, pais e professores) fere de morte o decantado fracasso escolar.



Neste ponto surge uma nova pergunta: Mas por que o governo não experimenta? Pelas mesmas razões que reluta em experimentar o voto facultativo. O fim do fracasso escolar desemprega muita gente que vive das mazelas originadas no próprio fracasso. É como o médico que cuida de doentes crônicos e teme que a cura de alguns comprometa o pagamento de suas despesas mensais. O que para uns é desgraça para outros é salário. O problema é que na educação tudo isso ocorre a um custo social muito alto.



Fechamos o século XX esperançosos de que a educação brasileira pudesse caminhar a passos largos para a qualidade almejada, mas ainda temos muito a fazer. De qualquer formar seria interessante que a essa discussão fosse incorporada também a questão da terminalidade dos estudos de nível fundamental. A lei que trata de seu início também deveria dizer, respeitando-se as naturezas e individualidades, quando eles terminam. Criou-se com o protecionismo exagerado uma confraria de alunos veteranos pelas escolas diurnas de ensino fundamental cujos desejos distanciam-se muito dos propósitos.



Para os envelhecidos, a escola transformou-se em um espaço de socialização e encontros possíveis protegidos pela mão do poder público. Nada existe para ser ensinado em uma escola de ensino fundamental que precise de mais de 10 anos para ser aprendido. Para que sejamos mais claros nem os portadores de distúrbios da aprendizagem precisam de tanto tempo nesse tipo de escola, já que, também no caso desse coletivo, o desenvolvimento é medido em função do que cada um pode aprender. Não vejo problema algum, por exemplo, no fato de os portadores de deficiência auditiva frequentarem a mesma escola dos alunos ouvintes, mas o excesso de tempo que normalmente a escola concede para a conclusão dos estudos, ao invés de ajudar, imbeciliza o indivíduo pela repetição exagerada dos conteúdos, mesmo para aqueles que não ouvem ou enxergam.



Obrigatoriedade do ensino, terminalidade dos estudos e fracasso escolar fazem parte de um conjunto de fatores melindrosos. Mexer com eles, em um país onde grande parte da população vive de trocas nem sempre lícitas de favores, é sempre algo muito difícil. Como na lenda, onde a salvação do Diabo traz sérios problemas para o marketing de Deus, a redução do contingente de alunos de uma hora para outra preocupa e muito àqueles que sempre viveram da perene busca de salvação para os que nunca verdadeiramente precisaram dela.