segunda-feira, 22 de agosto de 2011

AS VIRTUDES DO JOGO: FUSÃO DE ARTIGOS
















Quando você chegar,
é mesmo que eu estar vendo você
sempre brincando de velho,
me chamando de Pedro,
me querendo menino que viu de relance,
talvez um sorriso em homenagem a Pedro...
Moraes Moreira & Galvão


A escola pública brasileira comporta um expressivo contingente de meninos e meninas vitimados (as) pelo decantado fracasso escolar, fenômeno, ainda sem responsabilidade definida, mas causador de uma progressiva perda de interesse pelas ações desenvolvidas no espaço de educação formal que se convencionou chamar de escola. Essas percepções nos impulsionaram à produção de inúmeras estratégias extraídas dos jogos populares visando o redirecionamento do olhar de alunos e professores para outras formas de construção de conhecimentos. Portanto, um dos objetivos deste trabalho é, em médio prazo, contribuir para a edificação de um espaço escolar produtivo, orientado pelos signos da cooperação e da solidariedade, aproximando o discurso acadêmico da ludicidade que advém das práticas cotidianas.








Insistimos neste tema porque, muito embora saibamos que o termo lúdico seja bastante utilizado nos espaços de formação pedagógica, as formas mais tradicionais de jogos e brincadeiras, por razões dogmáticas ou por desleixo das esferas que cuidam da educação, não adentram a sala de aula da escola engessada e silenciosa. Passamos o século XX estudando as novas pedagogias, mas ao fechar da primeira década do século XXI, a pergunta mais ouvida nas reuniões escolares ainda é: o que é que eu posso fazer com essas crianças que não aprendem?




Sabemos, também, que ludo e jogo, apesar da diferença léxico-fonêmica, têm o mesmo valor semântico. A palavra jogo originada do latim jocus (coisa jocosa, gozação) tardiamente foi ocupando o espaço do vocábulo ludus como conceito definidor do jogo da vida, do jogo do amor, do jogo de cintura, do jogo de interesse, de azar ou de sorte, etc. Ludo está mesmo relacionado com a essência da vida em contraposição à palavra luto (luctus). Ludo é chama, riso, vida. Luto é dor, sofrimento, morte. O estar de luto representa sempre algo muito triste, a perda dos mais queridos ou em, determinadas ocasiões, atos de protesto pelo fim de alguma situação incômoda. Ludo, portanto, é a melhor definição para o estado de felicidade e para o aprendizado das primeiras regras solidárias de convivência. Daí a grande preocupação (pelo menos é isso que se ouve) com a ausência de ludicidade no espaço pedagógico.








Neste sentido, a questão que está posta para discussão gira em torno das ações que precisam ser desenvolvidas na escola visando o fomento de várias atividades motivadoras que garantem uma boa aprendizagem. A informação só sensibiliza o organismo que está preparado para recebê-la. Assim sendo, podemos concluir que, dentre os movimentos que podem contribuir para o acontecimento do aprendizado dos números (e de várias outras formas de linguagem), um deles é resultante do encontro das estratégias que adotamos com um organismo motivado pelos signos da ludicidade.



Como vimos pelas primeiras conversas, este artigo está longe do status de uma obra de vanguarda. Possivelmente nada do que nele está escrito pode ser definido como novidade pedagógica. Além disso, estamos bem longe da idade média, tempo em que os jogos infantis eram considerados coisas do Demônio. Hoje grande parte da sociedade já pode compreender o quão importante são os jogos e as ingênuas brincadeiras infantis para o pleno desenvolvimento de seus queridos rebentos.

É preciso, no entanto, que não nos esqueçamos de que uma parte dessas mudanças deve-se às almas inquietas de Pestalozzi e Fröebel e aos artífices da Escola Nova, liderados nas Américas por Dewey e na Europa por Freinet e Montessori. De comum entre eles o desejo de que a escola fizesse, mais freqüentemente, uso dos apetrechos lúdicos, capazes de contribuir para a melhoria da qualidade das atividades nos espaços de domínio acadêmico. Na sequência, os construtivismos de Piaget, Vygotsky, Ferreiro e Kamii abririam novos caminhos para a compreensão dos fenômenos que interferem na aprendizagem, mas não se afastariam um milímetro da escola lúdica. O jogo tornava-se consensual quando o assunto em discussão girava em torno das estratégias que deveriam ser construídas pela escola contemporânea objetivando não só a melhoria dos aspectos relativos à cognição, mas a edificação de uma instituição regida pelos signos da afetividade.

Os segmentos menos favorecidos da sociedade do século XXI sabem de suas conquistas, mas ainda lutam pela melhoria da qualidade do ensino de sua imensa prole. Percebe a dicotomia entre a prática e o discurso, mas não possuem os instrumentos capazes de unificá-los. Essas considerações, de certa forma, contribuíram para a construção de inúmeras estratégias de ensino, mas não evitaram que chegássemos ao século XXI fazendo a mesma pergunta: Por que, apesar do desenvolvimento dessa nova consciência, o jogo, instrumento abençoado pela teoria, é tão pouco utilizado nos interstícios da escola popular? Quais são as causas do engessamento pedagógico da instituição criada para promover a equalização das oportunidades?

Procurando respostas para esses questionamentos, resolvemos discorrer sobre as virtudes do jogo no sentido de trazer para o nosso lado, aqueles que ainda o percebem como um meio sinônimo de vício, um dogma que tem origem na preocupação do cristianismo em evitar as máculas e os pecados da jogatina que impediriam os seus devotos de chegar ao reino dos céus.

Criou-se ao longo da história cristã a imagem de um Deus sisudo e pouco afeto a brincadeiras. Mas o que percebemos, com mais clareza nos dias de hoje, pelas representações impressas nas auras das entidades sagradas, são formas alegóricas repletas de cores, sons e gestos. Isto nos permite concluir que as divindades, como a maioria dos homens, também jogam entre si e torcem para que seus seguidores sejam felizes como os putos e anjos brincantes gestados pelas próprias santidades para cuidar da alegria do mundo. Em síntese, este é também o desejo de brincantes e trabalhadores.

O ato de brincar faz parte da natureza animal. Somos (homens, mulheres, borboletas, cavalos, andorinhas, cães e gatos) componentes de um reino de natureza animada, qualidade que nos distingue de vegetais e minerais. Os vegetais têm um ciclo de existência parecido com o nosso (nascem, crescem e morrem), mas não produzem movimentos espontâneos e/ou inteligentes nem apresentam indícios de que possuam sentidos capazes de estabelecer com o meio circundante diálogos que expressem tristeza, dor, prazer ou alegria. Todos os outros elementos existentes na grande aldeia são minerais: seres inertes em mórbido estado de espera do inexorável encontro, com aqueles que um dia tiveram vida: As árvores, os passarinhos, os comerciantes e nós.

Desta forma, podemos tomar o movimento (animação) como a principal característica do reino ao qual pertencemos e consequentemente das espécies às quais estamos biologicamente ligados (as) por semelhança física, orgânica e reprodutiva. No entanto, cessam, com o sopro da vida, as visíveis e científicas aproximações entre humanos e o conjunto totalizante dos seres irracionais. Isto porque, homens e mulheres são animados (as) e intelectuais; brincam, pensam e trabalham. E quando trabalhamos empreendemos um tipo de ação que nos transforma em seres singulares, únicos habilitados pela natureza à produção cultural.




No princípio era o movimento...
...depois vieram, além dos dias e das noites e não exatamente nesta ordem, o amor, a comida, o brinquedo e o trabalho. Somos brincantes e trabalhadores permanentemente desconfiados da veracidade da afirmação bíblica de que a luta pela sobrevivência é uma criação divina à guisa de castigo pelo ato sexual não consentido e simbolicamente representado pela célebre história da comida indevida da maçã.



Exageros, pilhérias e falhas à parte, o que está implícito nessa passagem cristã, é a natural vocação de homens e mulheres para o prazer, o fazer e o brincar. Este fato nos leva a crer que o simbolismo da ordem de expulsão de Adão e Eva do paraíso, pudesse ser resumido na seguinte frase: Ide! Amai, fazei e brincai!



Esta é a trinca verbal que nos unifica e ao mesmo tempo faz com que desconfiemos das pessoas que não amam, não brincam e não trabalham. A ausência de desejo para a consecução dessas três ações é objeto de inúmeros ensaios psicanalíticos e causa em nós, estranhamento diante dos anômalos (quase mortos) que consideramos passíveis de tratamento e, de certa forma, perigosos para a vida em grupo.

Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé

Estudos biológicos e psicanalíticos recentes, sobre o comportamento humano, indicam que a necessidade de procriar, brincar e produzir, síntese das ações expressas no período anterior, vem impressa em nosso mapa genético da mesma forma que os pássaros trazem no organismo a forma de seus ninhos. Ao DNA do João-de-Barro, por exemplo, já vem acoplada a receita para a construção de sua casa e a lista dos materiais que ele terá de transportar para o espaço que servirá tanto para o início da vida de seus filhos, quanto para o aprisionamento involuntário, que, quase sempre, leva à morte a sua inestimável companheira. Já em nossa escada helicoidal, além de milhões e milhões de outras coisas, está escrito em letras garrafais: A ordem é brincar!
Passamos a nos diferenciar de cobras e lagartos quando produzimos visando o aprimoramento dos objetos de uso cotidiano. As habilidades que adquirimos fizeram com que gradativamente fôssemos catapultados a patamares cada vez mais distantes de todos os nossos companheiros de reino, mas sabemos que, no que se refere ao aspecto físico, não somos lá muito diferentes de emas e avestruzes.



Tais constatações nos levam à crença de que o diferencial maior somente torna-se visível quando nos capacitamos, entre brincadeiras e ofícios, para o empreendimento de melhorias no espaço vital (o habitat). Esses acontecimentos devem-se em grande parte à generosidade da natureza, principal responsável pelo sucesso de nosso mais belo salto ao patamar em que hoje nos encontramos: Societariamente organizados para o consumo e para o prazer que advém da produção material (trabalho) e da fantasia (jogo e brinquedo) que garantem a saúde física e social das coletividades.



Já pensando no fechamento deste artigo, é preciso considerar, também, que o distanciamento entre trabalho e brinquedo é meramente semântico. Em essência, é muito tênue a linha que separa as duas ações. Seja pelo fato de as crianças não perceberem as brincadeiras e jogatinas como um não trabalho ou coisa de criança, seja pelas inúmeras formas de jogos incorporadas ao acervo laboral dos adultos para o simples deleite da alma.



Por tais razões, e por várias outras não tratadas neste trabalho, se mantêm atuais as considerações de Freire (1993), Bakhtin (1993) e Vygotsky (1991) sobre a relevância da festa, do jogo e da fantasia como instrumentos propiciadores da felicidade coletiva. Ao incorporarmos, à nossa visão pedagógica, a premissa de que a saúde da mente implica em saúde do corpo, é nosso dever, na qualidade de educadores, contribuir para que os espaços ampliadores dos saberes também se empenhem na construção de formas mais prazerosas de construção do conhecimento que se apresentam tanto nos exercícios primários que advém de nosso espírito lúdico, quanto nas variadas formas de trabalho que se distanciam da tortura, curam, emancipam e libertam.





BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade médio e no renascimento. São Paulo, Hucitec, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo, Paz e Terra, 1993.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1991.