terça-feira, 7 de junho de 2011

BEM FEITO! QUEM MANDOU BOTAR SEU FILHO AQUI?


IMAGENS GOOGLE










Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e a dos anjos,
se eu não tivesse a caridade,
seria como bronze que soa ou
como címbalo que tine...
São Paulo

Era mais ou menos isto que queria dizer a nota (aos pais), publicada pelo Colégio São Bento. A Igreja Católica da América Católica é uma das poucas instituições que insiste na prática de seus crimes, seus pequenos delitos, vomitando suas incoerências, certa de que a figura do perdão foi criada para uso daqueles que dela necessitam. Somente assim podemos compreender como depois de tantos pedidos internacionais de desculpas, alguém ou alguma instituição possa manter a sua prepotência em alta, como faz a Igreja Católica e suas derivações.

Quem lê a nota do Colégio São Bento e não conhece a história da Igreja deve pensar: esses padres são bons mesmos! Já no início se valem do belo poema, supostamente escrito por São Paulo (trecho em epígrafe) com o propósito de atenuar as dores de muitos causadas pela eterna omissão. E vejam bem! Não escrevo torcendo para que alguém abra mão de suas crenças. Sou filho de família cristã, passei toda a minha infância na Igreja e acho mesmo que dogma religioso não se discute.

No entanto devo também dizer que, de alguma forma, a humanidade precisa acordar e, como fiéis atentos, evitar que a Igreja continue a cometer os seus erros, sem que sejamos firmes nas críticas. Firmes na construção de novos caminhos, para uma entidade religiosa que poderia fazer um pouco mais pelo bem da humanidade.

A nota do colégio divulgada para atenuar o seu desleixo para com as relações intra-colegiais, utiliza um parágrafo para se solidarizar com a dor dos pais do menino agredido e, afora pequenos outros relatos a guisa de confissão de culpa, o resto da carta parece dizer claramente: o São Bento é um colégio confessional. Quem botou seu filho aqui leu o estatuto. Quem não estiver satisfeito, que procure outro colégio. São minhas essas palavras, mas confesso que não consegui entender outra coisa ao ler aquele arrazoado de prepotências.

Para quem não conhece o São Bento, é interessante uma leitura sobre o seu contexto geográfico (o histórico está na nota que circula na WEB). O magnífico colégio, por onde passaram as mais importantes cabeças pensantes para o bem e quase sempre para o mal deste país, fica na Praça Mauá, bem em frente à famosa zona de prostituição que se notabilizou no século XX e que hoje, apesar de bastante reduzida, ainda faz a alegria daqueles que se iniciam (sem precisar tornar público) na sua vida sexual. A dos pobres era na rua Pinto de Azevedo, a dos que tinham algum dinheiro, era mesmo nas boites da lasveguiana e empobrecida vida noturna do Pier Mauá.

Hoje, um imenso prédio espelhado atrapalha o encontro dos olhares dos meninos com as prostitutas de olhos roxos que cambaleiam pelas manhãs depois das noites insones, mas no passado, um prédio construído no século XIX, com jeito de castelo das bruxas, permitia a vista erótica para o deleite da filharada da pequena burguesia carioca e fluminense.

Essas são as recordações de minha adolescência e juventude, parte delas como observador participativo. Quantas vezes saíamos dos inferninhos, quando a rapaziada santificada chegava para as primeiras aulas do dia? Via aquilo com certa inveja, mas no mesmo momento, como gatos andarilhos, comemorava a liberdade de, em plena ditadura, poder estar circulando pelos espaços sujos e excitantes da Praça Mauá.

Mais tarde, tomei conhecimento de algumas outras peculiaridades do São Bento, a principal delas dizia que ali não havia vagas para moças. Às gargalhadas comemorava não ter estudado em coisa tão entediante. Imaginem o que é passar o período mais gostoso de sua vida, em tempo integral, sem uma mulher por perto. Delirava, ao lembrar-me de Elisângela, a bela de olhos verdes que estudava no meu jardim de infância suburbano e que aos seis anos de idade morríamos de paixão e de ciúmes. Minha Nossa Senhora, como imaginar que toneladas de hormônios masculinos pudessem ficar por tanto tempo represados, as adrenalinas, as meninas e todas as outras coisas femininas que fazem da nossa infância/adolescência o mais interessante período de nossas individualidades. Ninguém é feliz sem ter sido feliz neste sublime momento de nossas vidas!

Sobre o caso das agressões que motivou a nota do São Bento, a revista Veja da semana que fechou em 4 de maio, trouxe alguns depoimentos de ilustres que passaram pelo colégio. Quase todos trazem boas recordações, mas relatam as brincadeiras perversas que já existiam em meados do século passado. Ora, o que fazer com tantos homens juntos, às portas da maturidade sexual, às portas de seus primeiros desejos e sem o lado feminino para o exercício do olhar faminto? É possível que as rasteiras nos mais fracos, fazer com que os pequeninos comessem papel, os cascudos e as passagens de mão nos órgãos genitais, fossem utilizados como uma saída para atenuar as dores causadas por proposta tão arcaica. Também não sei se existem outros colégios que não admitem meninas, mas saibam os pais que colocam seus filhos em colégios com essas restrições, que estão dando aos seus queridos rebentos o pior presente de sua vida. É possível também que este seja o único ponto causador de inveja, nos alunos do São Bento, dos meninos e meninas das escolas públicas saindo agarrados e aos beijos, comemorando a felicidade de poderem estudar juntos. As crianças não têm nada a ver com o celibato dos padres.

Mantêm-se o Colégio São Bento como uma ilha de excelência intocável em seus princípios, inclusive naquilo que diz respeito ao cumprimento das leis. É como se toda a discussão a respeito do Bullying servisse apenas para as escolas públicas. Para além da percepção do colégio sobre as qualidades do menino agressor a instituição deveria ter feito as devidas notificações junto aos órgãos competentes: DPCA, Conselhos Tutelares ou Juizados de Menores. Tanto a lei federal quanto a estadual estão na WEB à disposição de todos, ricos e pobres. Basta cumpri-las.

LIVROS ERRADOS: A CULPA É DO GOVERNO!





Gosto de escrever e escrevo sistematicamente. Venho publicando, nos últimos dez, pelo menos um livro a cada dois anos e tenho a preocupação de submeter o meu trabalho a dois revisores. O primeiro sempre levanta mais de cem erros, o segundo mais dez e o livro, para meu desespero, ainda sai com quatro ou cinco erros das mais diversas procedências e qualidades. Nada diferente do que vem ocorrendo com os livros do governo. Ou melhor, com os livros que o governo compra com o sacrifício de nossos salários.


Esse fenômeno passou a ser notado, desde que o poder central, através do FNDE, passou a comprar os livros didáticos para todo o país. De uns dez ou quinze anos para cá, O MEC transformou-se no maior cliente para este tipo de produto, aplicando bilhões de reais todos os anos em material para distribuição aos alunos das escolas públicas. Mais ou menos nesta época, começaram a aparecer os problemas. Quem é professor, está cansado de pegar erros grosseiros e de assistir a um variado cardápio de plágios que, de vez em quando, carrega para outro livro até os erros cometidos no primeiro, como prêmio ou castigo pela audácia da cópia.


A primeira questão que se coloca é de fundo didático-pedagógico motivado pelas interesseiras contradições que permeiam o mundo acadêmico. Todas as pessoas que fazem parte das tais comissões de avaliação do livro didático sabem que, no mínimo são coniventes com a corrupção que se instalou para facilitação da entrada dos incautos em um mercado tão concorrido. Por isso contrariam os seus próprios princípios e os princípios das academias, nas quais aprenderam todas as lições, quando aprovam livros para que sejam utilizados por meninos e meninos habitantes das mais diversas realidades. Todos (as) sabem que o livro da Ilha de Marajó não tem muito sentido quando lido pelos meninos da Lagoa dos Patos, mas com tanto dinheiro em jogo, quem é que vai contrariar a organização.


A outra questão diz respeito aos prazos para confecção dos livros. Como o MEC precisa montar as falsas licitações e fazer com que os professores escolham o material em uma lista fechada, passou também a exigir prazo aos fazedores de livros e estes para atender aos chamados do MEC, passaram a confiar demais nos computadores desprezando a atuação de um profissional muito importante para este tipo de trabalho que é o revisor final. Os jornais diários, também tomaram essa decisão, mas sabendo dos erros que cometem cotidianamente, criaram uma coluna para correção e justificativa de seus próprios erros. Ressalve-se ainda que um erro gráfico no jornal, não deve ser entendido como coisa tão grave quanto nos livros dos pequenos aprendizes.



A terceira questão, está diretamente ligada à natureza humana que, ao vislumbrar a possibilidade de lucro imediato, despreza a ética, fazendo livros às pressas para atender ao chamado das fraudulentas concorrências muitas vezes patrocinadas pelo capital estrangeiro das dezenas de editoras que passaram a ver nesta terra de ninguém um espaço privilegiado para o aumento de seus lucros. Assim procedem porque sabem que os rombos somente aparecem quando mais um ministro que ficou rico ilicitamente chama à nossa atenção para a existência perene da nefasta corrupção ou quando alguma empresa sente-se prejudicada pela quebra dos acordos firmados.


Não faz muito tempo, o próprio MEC tomou conhecimento de uma leva de livros que apareceu em uma lixeira nordestina, depois o caso caiu no esquecimento. O governo sequer tem vergonha de, ao final do ano, exigir que os meninos devolvam os livros que usaram e que ficaram cheios de boas recordações, quando ele mesmo sabe que toneladas do produto não utilizadas acabam pelos sebos ou nas guilhotinas das empresas que compram papéis velhos, fruto de aquisições super-dimensionadas, para que ninguém viole os espúrios acordos firmados. Com relação aos livros da lixeira do nordeste, o próprio MEC ficou de investigar, mas deixou cair no esquecimento e até hoje não sabemos quem foi o responsável pelo achado macabro.


Quero dizer com isso, que os recentes erros de português e matemática são frutos desses apressamentos governamentais. O que está errado no livro de português que dividiu a linguística brasileira, não é o fato de o livro dizer que podemos utilizar uma ou outra forma de fala ou escrita, mas, a meu ver, faltou texto para a explicação ou para ser mais sincero, um pouco mais de erudição para o entendimento daquilo que os escritores queriam dizer. Também no caso do livro de matemática a pressa para que o dinheiro chegasse mais rápido na conta da empresa fornecedora fez com que o matemático não visse que a diferença entre dez e sete não tem o número quatro como resultado. Ou alguém, depois de ler a matéria de O Globo, ficou pensando que o professor não soube fazer a continha de diminuir?


Não! Todos sabem de tudo, mas o governo abriu as portas da corrupção às pressões da indústria de livros e nós professores deveríamos pagar por nossos erros quando ficamos com os olhos vidrados sobre aquele amontoado de besteiras escritas naqueles grossos exemplares que chegam, de vez em quando, para meninos e meninas da escola pública. Os livros para as quintas-séries (agora sextos-anos) engrossam a cada ano e já começam a ficar parecidos com os vade-mécuns das escolas de medicina e direito. Começo a achar que o governo paga pelo número de páginas. Imaginem o que é perceber em um livro de matemática uma série de exercícios repetitivos, quando todos sabem que o conhecimento não se constrói pela quantidade de vezes que uma determinada equação é refeita. Com todo respeito aos autores, mas dentro da linha da repetição para memorizar, o Método Kumon é melhor e consome muito menos dinheiro e papel.


Depois , como ninguém cobra, fica aquela metade final do livro com os temas de geometria que as crianças nunca viram ou testaram. Ora porque os professores de matemática não gostam muito de geometria, ora porque os governos não se preocupam com a compra dos instrumentos que possibilitariam às crianças os primeiros movimentos com os artefatos criados pelo homem para as aferições de natureza prática. Quantas crianças ou adolescentes terminam o segundo grau e nunca usaram um compasso? Quantas nunca fizeram uso correto de um par de esquadros? Mas os livros estão lá repletos de belas imagens coloridas (para aumentar o preço do embrulho) à espera da fogueira na qual, mais tarde, de uma forma ou de outra, irão arder.


O que lamento, é o fato de os mesmos professores que nas universidades enchem a boca para falar em diversidade cultural, construção do livro didático apropriado para cada realidade, ao chegaram às tais comissões esquecem-se do que aprenderam/ensinaram e colaboram para a evolução do besteirol que, gradativamente, quando vai tomando conta dos livrinhos da garotada.


Para além das questões referentes aos erros que motivaram a discórdia, restam os problemas de plágio de texto e imagem, mas creio que isto diz respeito aos autores. Os livros, acompanhando a forma de produção dos automóveis e dos dicionários, vão ficando cada dia mais parecidos, nos títulos, nas figuras reutilizadas, nos textos semi-copiados para a realização do decantado fracasso. A queda do muro de Berlim derrubou ideologias, posicionamentos e posturas. Todos devem pensar e agir, mais ou menos do mesmo modo. Todos devem atender ao chamado do poder para alguma dobra, com a garantia de que todos sejam aquinhoados com alguma sobra. Aprendemos a preferir o silêncio, a concordar com as propostas sem que saibamos sobre suas procedências e intencionalidades. O livro didático, com seus erros e acertos, é apenas uma parte da pasteurização ideológica que faz com que todos nós fiquemos bastante parecidos, inclusive no espanto diante de algo que foi criado e organizado para este mesmo fim. Mas se é assim, por que o espanto?

sexta-feira, 3 de junho de 2011

PROCURANDO COMPREENDER DELEUZE

PROCURANDO COMPREENDER DELEUZE

Antonio Eugenio do Nascimento*

Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário nas pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável.
DELEUZE

Contraditória, interessante, sedutora, aberta a todos os possíveis assim é a filosofia. Aberto a todos os possíveis, sedutor, interessante, contraditório assim é Deleuze. Logo na primeira vez em que estivemos juntos por conta das leituras que fazia para ajudar ao filho mais novo no fechamento de seu trabalho de conclusão de curso, percebi que não estava diante de um filósofo preocupado apenas com verdades ou quebras de sofismas. Para Deleuze, filosofia é criação e isto, como em Platão, faz com que arte e filosofia se enrede numa única teia cuja razão de ser é a criação. Mas, para manter a coerência, a primeira letra de seu abecedário nada tem nada a ver com a arte, talvez o melhor conceito para começar o emblemático trabalho. Deleuze, ou seu entrevistador, optou, logo de início, pela natureza dos animais, não como um apaixonado por eles, mas como um anti-Cora Rónai a praguejar contra as manias de caninos e bichanos.


... não gosto dos roçadores, um gato passa o seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal.

Para a arte, que ficou sem letra, restou o serpentear de suas proximidades com a filosofia por entre os conceitos que, entre risos e carrancudices, vai discorrendo para o deleite dos que o assistem.
Aprendemos, e acho que esta é a principal virtude do abecedário, que Deleuze não é o revolucionário clássico que ensina a pegar em armas e bastões para transformar o mundo. Filho de pequenos burgueses, nascido na França nos arredores de Paris, o que se percebe em seus arroubos durante a entrevista é um certo ar de deboche para com esse tipo de revolução e para com todas as ferramentas necessárias para a sua construção.


... a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. (...) Imagine meu pai que era meio “Cruz de Fogo”... Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta.


Neste ponto Deleuze distancia-se de Foucault, de Sartre e de dezenas de pensadores europeus que na encruzilhada de mais difícil travessia do século XX preferiram estar nas ruas, quase sempre junto com a juventude gritando por casa, emprego, pão e liberdade. Nem por isso, aqueles que passaram a vida nas praças a reclamar das injustiças, deixaram de curvar-se à brilhante retórica do falastrão, irônico e inteligentíssimo amigo de Félix Guattari.


Esse prazer de falar de seu distanciamento do movimento das ruas não seria notado, se não fosse ele mesmo o expositor de sua opção pelo conservadorismo que resolveu alimentar, tanto quanto professor, tanto como cidadão. Deleuze é um intelectual conservador até mesmo no contraponto que faz à contemporaneidade antropológica que não admite a possibilidade de existência de homens ou mulheres incultas: havia uma burguesia culta, mas minha era inculta. Completamente inculta dizia ele, como se fosse possível alguém sobreviver e manter a sobrevida de alguém na condição de um ser totalmente inculto. E vejam que estamos tratando de indivíduos excepcionalmente letrados e produtivos, como seu pai um engenheiro curioso e inflador de zepelim. Mas o que seria da filosofia se não provocasse em nós essas doces iras?


Essa forma de captar palavra, sem tempo para reflexões, evita a nossa censura, desnuda o indivíduo. O abecedário é mais rico pelas contradições expostas do que pelas informações prestadas a respeito dos sucessos. No entanto, é preciso que façamos os filtros já que palavras ditas desta forma nem sempre são muito confiáveis. O próprio Deleuze, já prevendo a possibilidade de uma enxurrada involuntária de inverdades, incoerências e contradições, pediu que o abecedário de cento e tantas páginas somente fosse publicado após a sua morte, algo facilitado pela violência cometida contra si, se a memória mim não trai, apenas um ano após a divulgação consentida da famosa entrevista.


Responder a uma questão, sem ter refletido, é algo inconcebível para mim. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte.


Este foi o acordo firmado entre ele e o produtor do abecedário, mas a generosidade de Deleuze fez com que o produto fosse ao ar, em uma televisão alemã, pouco tempo antes de sua morte.
Também são belas e confortantes as exposições sobre Nietzsche e Spinoza ao tratar da alegria que contraria os princípios da religião e que rega a criatividade indispensável à existência do jogo e da arte. Intuo que essas certezas, de alguma forma, tenham contribuído para a terrível, mas coerente escolha de Deleuze em não esperar pelo fim natural da vida, se é que, à coisa tão medonha, podemos chamar de natural.


Caminhando um pouco mais, vamos compreender o distanciamento ou o ceticismo de Deleuze para com as causas e os resultados do fenômeno político e social chamado de revolução. Na letra R a escolha foi para o vocábulo resistência, um conceito largamente utilizado por Deleuze para falar sobre a importância do conceito. Criar conceitos é resistir. Criar é resistir. Para Deleuze é uma ingenuidade cogitar-se sobre a morte da filosofia. Segundo ele, da mesma forma que a ciência cria funções a filosofia cria conceitos e nesta criação está a razão de ser da resistência que advém dos movimentos filosóficos e sociais.

As coisas mudam, mas não há razão para... O que vai substituir a filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que não precisamos mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo bem, os idiotas querem acabar com a filosofia. Quem vai criar conceitos? A informática? São os publicitários? Eles usam a palavra conceito. Tudo bem, teremos os conceitos publicitários, conceitos de uma grande marca de macarrão. Não será um grande rival para a filosofia. Acho que a palavra conceito não é usada da mesma maneira. Mas hoje é a publicidade que se apresenta como rival da filosofia porque eles dizem que são eles que inventam conceitos. (...) O que eles chamam de conceitos nos faz rir. Não devemos nos preocupar.


O abecedário também ajuda a tirar de seus leitores a idéia de que Deleuze, por estar muito próximo de algumas figuras miticamente revolucionárias, também tivesse tido alguma militância político-partidária. Ledo engano. Muito embora tenha-se colocado por toda a sua vida professoral como um indivíduo de esquerda, Deleuze não foi um militante, carregador de piano, colador de panfletos em postes. Pegar em armas, então, nem em sonhos. É possível, e nada desprezível, que a sua origem burguesa o tenha afastado dos quadros do partido comunista francês onde parte de seus companheiros militaram. Sobre este assunto, com um certo ar de deboche e uma justificativa pouco aceitável para um intelectual que se achava de esquerda, é ele mesmo quem esclarece:


Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar dessas reuniões o tempo todo. E era a época do “Apelo de Estocolmo”. Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas (...) Ainda por cima tinha-se que vender o jornal L’Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.


Compreende-se, portanto, que a sua decisão de manter-se independente politicamente (ou mais próximo do movimento anarquista), foi determinante para a composição de seu desfiladeiro de ousadias conceituais, todo o tempo a reafirmar, fazendo um contraponto à própria visão da esquerda, que as categorias, as classes e para ser mais exato, o conceito de minorias e o seu modo de identificação política, atrapalha o movimento de emancipação dessas mesmas categorias. É como se, de uma hora para outra, não existissem mais os podres poderes e com eles desaparecessem também índios, e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes. Com a licença de Caetano, adeus carnaval!


Como se tudo isso não bastasse para colocar na vitrine da filosofia um pensador de sua estirpe, ao dissertar sobre o papel das esquerdas para satisfação da letra G, se esmera em desqualificar todas as construções conceituais produzindo uma enxurrada destruidora da velha dicotomia e das lutas nas quais perderam a vida milhões de pessoas em todo o mundo e ainda serve para marcar posições entre aqueles que acham que a possibilidade de existência de um mundo mais justo depende da pavimentação dos caminhos dos mais fracos e os que acham que cada indivíduo é, em um mundo globalizado e democrático, o responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Sobre este assunto Deleuze é pontual: as revoluções não deram em nada.


Também no afã de dar à jurisprudência um valor para além do que ela, hoje, representa no campo do direito e livre das amarras da escrita, Deleuze é ainda mais enfático e polêmico ao desqualificar a luta contemporânea pelos direitos humanos. Faz uma geléia pondo todos no mesmo plano, como se as centenas de militantes que zelam pela alegria do mundo (não importando para efeito deste tema se o sujeito é de direita ou de esquerda) não estivessem convencidos de que é importante que nos mantenhamos à espreita, em uma vigília constante para que os desatinos dos poderes autorizados não repitam as atrocidades com as quais tivemos de conviver em passado recente. Tento não opinar, mas como brasileiro é impossível imaginar que a sociedade possa reequilibra-se sem a ajuda dessas organizações.


Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste.


Além da capacidade de síntese para definir o indizível, Deleuze é brilhante ao criar alternativas, conceitos totalmente abertos, para aqueles que escrevem sobre as trajetórias da humanidade. O escriba enriquece a discussão ao se colocar como um mediador que resvala para a anarquia, mas sabe reerguer-se com o seu coletivo de conceitos advindos de um plano de imanência infinito que funciona como uma fonte que mata a sede dos que desejam compreendê-lo ao recriar conceitos adormecidos e de certa forma desprezados ou esquecidos no banco de dados da filosofia. Somente para o auxílio dos educadores em suas lutas cotidianas estão postos em dois ou três livros os conceitos de rizoma, território, imanência e própria natureza do conceito contribuindo sobremaneira para que compreendamos de que forma o conhecimento se constrói, de que forma essas conexões vão se atar às nossas estruturas inatas, congênitas ou arquitetadas no segundo útero com a ajuda de várias pessoas, a maioria componente de nosso grupo familiar mais imediato. Não existe gênese sem estrutura e nem estrutura sem gênese é o que nos lembra Jean Piaget. O conhecimento é fruto de um entrelaçar perpétuo, de uma simbiose eterna entre o homem e o meio.


Como podemos perceber, as doces contradições ficam por conta das desqualificações das lutas e das constituições identitárias que, na visão dos sofredores de latino-américa, muitas vezes são necessárias à sobrevivência de um grupo minoritário qualquer. As maiores discordâncias ficam no campo sócio-político. Deleuze sequer admite a existência das minorias. Diz, com ares de dono da verdade, que todos nascem minorias. Mas isso, possivelmente, também seja fruto de uma trajetória acadêmica que, em nenhum momento, foi abalada pelos cascos das cavalarias que garantiam a tranqüilidade do estado. Deleuze soube distanciar-se das turbulências das décadas de 60 e 70, mesmo quando fala sobre elas o faz como espectador de seu tempo e não como apedrejador da militância remunerada pelo poder. Nada desmerecedor nesta forma de posicionar-se. Nada desabonador para um filósofo que manteve a coerência entre suas formas de ver o mundo e o respeito à tradição que chegava aos seus ouvidos como ecos de família a fazer contrapontos e a justificar a violência do estado como um mal necessário visando à garantia da ordem pública.


Quando digo era uma família de direita... Eu me lembro bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas devem restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que maio de 1968.


Deleuze vivenciou, como mostra o texto acima e como ele mesmo gosta de repetir, o conflito entre a sua formação acadêmica e a formação de seu caráter que, como o de todos nós, começa na mais tenra idade, e permanece como laços muito difíceis de serem desatados.
Além da amizade, quase matrimonial, com Guattari, Deleuze confessa o seu desapontamento pelo fato de não ter se aproximado mais de Foucault.


Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim...


E se as vaidades ou os medos conspiraram para os encontros, ficaram as aproximações nos escritos, na virtude do acontecimento, um fenômeno visto por Deleuze como algo que
pode devorar regimentos e estatutos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida acontecem e coexistem com os acidentes da vida correspondente.
Isto nos ajuda a compreender as surpresas do cotidiano da escola engessado pela forma como a instituição é conduzida, atrelada aos planos homogeneizantes como se fosse possível fazer acontecer os currículos construídos para o atendimento a grupos distintos, mas que são apresentados com a mesma roupagem, com os mesmos conteúdos e as mesmas formas de aprender e ensinar. Sobre este mesmo conceito, Foucault (1971:145-172), tem proposição semelhante:


...é preciso entendê-lo (o acontecimento) não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório singular do acontecimento. (Foucault, 1971, p.145-172)

No esgotamento do espaço concedido devo registrar a minha felicidade por mais um encontro, desta feita, patrocinado pelos companheiros do PROPED-UERJ. Em Deleuze estão as marcas da filosofia em sua forma mais clássica. Vivemos um mundo novo, atravessado por ideologias bem distantes da simplória distinção que havia entre realistas e idealistas. Por isso é mais fácil cobrar dos que escrevem, numa comparação com os que somente falam, posicionamentos ideológicos para o atendimento às várias correntes derivadas do tronco original da filosofia clássica. Mas Deleuze não escreveu para a satisfação dos grupos. Deleuze foi um criador, um artista que sabia que a sua obra não agradará a todos. Essas são as principais características da filosofia hodierna e das formas de expressão que não foram pensados para o deleite de todos.