PROCURANDO COMPREENDER DELEUZE
Antonio Eugenio do Nascimento*
Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário nas pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável.
DELEUZE
Contraditória, interessante, sedutora, aberta a todos os possíveis assim é a filosofia. Aberto a todos os possíveis, sedutor, interessante, contraditório assim é Deleuze. Logo na primeira vez em que estivemos juntos por conta das leituras que fazia para ajudar ao filho mais novo no fechamento de seu trabalho de conclusão de curso, percebi que não estava diante de um filósofo preocupado apenas com verdades ou quebras de sofismas. Para Deleuze, filosofia é criação e isto, como em Platão, faz com que arte e filosofia se enrede numa única teia cuja razão de ser é a criação. Mas, para manter a coerência, a primeira letra de seu abecedário nada tem nada a ver com a arte, talvez o melhor conceito para começar o emblemático trabalho. Deleuze, ou seu entrevistador, optou, logo de início, pela natureza dos animais, não como um apaixonado por eles, mas como um anti-Cora Rónai a praguejar contra as manias de caninos e bichanos.
... não gosto dos roçadores, um gato passa o seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal.
Para a arte, que ficou sem letra, restou o serpentear de suas proximidades com a filosofia por entre os conceitos que, entre risos e carrancudices, vai discorrendo para o deleite dos que o assistem.
Aprendemos, e acho que esta é a principal virtude do abecedário, que Deleuze não é o revolucionário clássico que ensina a pegar em armas e bastões para transformar o mundo. Filho de pequenos burgueses, nascido na França nos arredores de Paris, o que se percebe em seus arroubos durante a entrevista é um certo ar de deboche para com esse tipo de revolução e para com todas as ferramentas necessárias para a sua construção.
... a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. (...) Imagine meu pai que era meio “Cruz de Fogo”... Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta.
Neste ponto Deleuze distancia-se de Foucault, de Sartre e de dezenas de pensadores europeus que na encruzilhada de mais difícil travessia do século XX preferiram estar nas ruas, quase sempre junto com a juventude gritando por casa, emprego, pão e liberdade. Nem por isso, aqueles que passaram a vida nas praças a reclamar das injustiças, deixaram de curvar-se à brilhante retórica do falastrão, irônico e inteligentíssimo amigo de Félix Guattari.
Esse prazer de falar de seu distanciamento do movimento das ruas não seria notado, se não fosse ele mesmo o expositor de sua opção pelo conservadorismo que resolveu alimentar, tanto quanto professor, tanto como cidadão. Deleuze é um intelectual conservador até mesmo no contraponto que faz à contemporaneidade antropológica que não admite a possibilidade de existência de homens ou mulheres incultas: havia uma burguesia culta, mas minha era inculta. Completamente inculta dizia ele, como se fosse possível alguém sobreviver e manter a sobrevida de alguém na condição de um ser totalmente inculto. E vejam que estamos tratando de indivíduos excepcionalmente letrados e produtivos, como seu pai um engenheiro curioso e inflador de zepelim. Mas o que seria da filosofia se não provocasse em nós essas doces iras?
Essa forma de captar palavra, sem tempo para reflexões, evita a nossa censura, desnuda o indivíduo. O abecedário é mais rico pelas contradições expostas do que pelas informações prestadas a respeito dos sucessos. No entanto, é preciso que façamos os filtros já que palavras ditas desta forma nem sempre são muito confiáveis. O próprio Deleuze, já prevendo a possibilidade de uma enxurrada involuntária de inverdades, incoerências e contradições, pediu que o abecedário de cento e tantas páginas somente fosse publicado após a sua morte, algo facilitado pela violência cometida contra si, se a memória mim não trai, apenas um ano após a divulgação consentida da famosa entrevista.
Responder a uma questão, sem ter refletido, é algo inconcebível para mim. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte.
Este foi o acordo firmado entre ele e o produtor do abecedário, mas a generosidade de Deleuze fez com que o produto fosse ao ar, em uma televisão alemã, pouco tempo antes de sua morte.
Também são belas e confortantes as exposições sobre Nietzsche e Spinoza ao tratar da alegria que contraria os princípios da religião e que rega a criatividade indispensável à existência do jogo e da arte. Intuo que essas certezas, de alguma forma, tenham contribuído para a terrível, mas coerente escolha de Deleuze em não esperar pelo fim natural da vida, se é que, à coisa tão medonha, podemos chamar de natural.
Caminhando um pouco mais, vamos compreender o distanciamento ou o ceticismo de Deleuze para com as causas e os resultados do fenômeno político e social chamado de revolução. Na letra R a escolha foi para o vocábulo resistência, um conceito largamente utilizado por Deleuze para falar sobre a importância do conceito. Criar conceitos é resistir. Criar é resistir. Para Deleuze é uma ingenuidade cogitar-se sobre a morte da filosofia. Segundo ele, da mesma forma que a ciência cria funções a filosofia cria conceitos e nesta criação está a razão de ser da resistência que advém dos movimentos filosóficos e sociais.
As coisas mudam, mas não há razão para... O que vai substituir a filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que não precisamos mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo bem, os idiotas querem acabar com a filosofia. Quem vai criar conceitos? A informática? São os publicitários? Eles usam a palavra conceito. Tudo bem, teremos os conceitos publicitários, conceitos de uma grande marca de macarrão. Não será um grande rival para a filosofia. Acho que a palavra conceito não é usada da mesma maneira. Mas hoje é a publicidade que se apresenta como rival da filosofia porque eles dizem que são eles que inventam conceitos. (...) O que eles chamam de conceitos nos faz rir. Não devemos nos preocupar.
O abecedário também ajuda a tirar de seus leitores a idéia de que Deleuze, por estar muito próximo de algumas figuras miticamente revolucionárias, também tivesse tido alguma militância político-partidária. Ledo engano. Muito embora tenha-se colocado por toda a sua vida professoral como um indivíduo de esquerda, Deleuze não foi um militante, carregador de piano, colador de panfletos em postes. Pegar em armas, então, nem em sonhos. É possível, e nada desprezível, que a sua origem burguesa o tenha afastado dos quadros do partido comunista francês onde parte de seus companheiros militaram. Sobre este assunto, com um certo ar de deboche e uma justificativa pouco aceitável para um intelectual que se achava de esquerda, é ele mesmo quem esclarece:
Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar dessas reuniões o tempo todo. E era a época do “Apelo de Estocolmo”. Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas (...) Ainda por cima tinha-se que vender o jornal L’Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.
Compreende-se, portanto, que a sua decisão de manter-se independente politicamente (ou mais próximo do movimento anarquista), foi determinante para a composição de seu desfiladeiro de ousadias conceituais, todo o tempo a reafirmar, fazendo um contraponto à própria visão da esquerda, que as categorias, as classes e para ser mais exato, o conceito de minorias e o seu modo de identificação política, atrapalha o movimento de emancipação dessas mesmas categorias. É como se, de uma hora para outra, não existissem mais os podres poderes e com eles desaparecessem também índios, e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes. Com a licença de Caetano, adeus carnaval!
Como se tudo isso não bastasse para colocar na vitrine da filosofia um pensador de sua estirpe, ao dissertar sobre o papel das esquerdas para satisfação da letra G, se esmera em desqualificar todas as construções conceituais produzindo uma enxurrada destruidora da velha dicotomia e das lutas nas quais perderam a vida milhões de pessoas em todo o mundo e ainda serve para marcar posições entre aqueles que acham que a possibilidade de existência de um mundo mais justo depende da pavimentação dos caminhos dos mais fracos e os que acham que cada indivíduo é, em um mundo globalizado e democrático, o responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Sobre este assunto Deleuze é pontual: as revoluções não deram em nada.
Também no afã de dar à jurisprudência um valor para além do que ela, hoje, representa no campo do direito e livre das amarras da escrita, Deleuze é ainda mais enfático e polêmico ao desqualificar a luta contemporânea pelos direitos humanos. Faz uma geléia pondo todos no mesmo plano, como se as centenas de militantes que zelam pela alegria do mundo (não importando para efeito deste tema se o sujeito é de direita ou de esquerda) não estivessem convencidos de que é importante que nos mantenhamos à espreita, em uma vigília constante para que os desatinos dos poderes autorizados não repitam as atrocidades com as quais tivemos de conviver em passado recente. Tento não opinar, mas como brasileiro é impossível imaginar que a sociedade possa reequilibra-se sem a ajuda dessas organizações.
Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste.
Além da capacidade de síntese para definir o indizível, Deleuze é brilhante ao criar alternativas, conceitos totalmente abertos, para aqueles que escrevem sobre as trajetórias da humanidade. O escriba enriquece a discussão ao se colocar como um mediador que resvala para a anarquia, mas sabe reerguer-se com o seu coletivo de conceitos advindos de um plano de imanência infinito que funciona como uma fonte que mata a sede dos que desejam compreendê-lo ao recriar conceitos adormecidos e de certa forma desprezados ou esquecidos no banco de dados da filosofia. Somente para o auxílio dos educadores em suas lutas cotidianas estão postos em dois ou três livros os conceitos de rizoma, território, imanência e própria natureza do conceito contribuindo sobremaneira para que compreendamos de que forma o conhecimento se constrói, de que forma essas conexões vão se atar às nossas estruturas inatas, congênitas ou arquitetadas no segundo útero com a ajuda de várias pessoas, a maioria componente de nosso grupo familiar mais imediato. Não existe gênese sem estrutura e nem estrutura sem gênese é o que nos lembra Jean Piaget. O conhecimento é fruto de um entrelaçar perpétuo, de uma simbiose eterna entre o homem e o meio.
Como podemos perceber, as doces contradições ficam por conta das desqualificações das lutas e das constituições identitárias que, na visão dos sofredores de latino-américa, muitas vezes são necessárias à sobrevivência de um grupo minoritário qualquer. As maiores discordâncias ficam no campo sócio-político. Deleuze sequer admite a existência das minorias. Diz, com ares de dono da verdade, que todos nascem minorias. Mas isso, possivelmente, também seja fruto de uma trajetória acadêmica que, em nenhum momento, foi abalada pelos cascos das cavalarias que garantiam a tranqüilidade do estado. Deleuze soube distanciar-se das turbulências das décadas de 60 e 70, mesmo quando fala sobre elas o faz como espectador de seu tempo e não como apedrejador da militância remunerada pelo poder. Nada desmerecedor nesta forma de posicionar-se. Nada desabonador para um filósofo que manteve a coerência entre suas formas de ver o mundo e o respeito à tradição que chegava aos seus ouvidos como ecos de família a fazer contrapontos e a justificar a violência do estado como um mal necessário visando à garantia da ordem pública.
Quando digo era uma família de direita... Eu me lembro bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas devem restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que maio de 1968.
Deleuze vivenciou, como mostra o texto acima e como ele mesmo gosta de repetir, o conflito entre a sua formação acadêmica e a formação de seu caráter que, como o de todos nós, começa na mais tenra idade, e permanece como laços muito difíceis de serem desatados.
Além da amizade, quase matrimonial, com Guattari, Deleuze confessa o seu desapontamento pelo fato de não ter se aproximado mais de Foucault.
Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim...
E se as vaidades ou os medos conspiraram para os encontros, ficaram as aproximações nos escritos, na virtude do acontecimento, um fenômeno visto por Deleuze como algo que
pode devorar regimentos e estatutos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida acontecem e coexistem com os acidentes da vida correspondente.
Isto nos ajuda a compreender as surpresas do cotidiano da escola engessado pela forma como a instituição é conduzida, atrelada aos planos homogeneizantes como se fosse possível fazer acontecer os currículos construídos para o atendimento a grupos distintos, mas que são apresentados com a mesma roupagem, com os mesmos conteúdos e as mesmas formas de aprender e ensinar. Sobre este mesmo conceito, Foucault (1971:145-172), tem proposição semelhante:
...é preciso entendê-lo (o acontecimento) não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório singular do acontecimento. (Foucault, 1971, p.145-172)
No esgotamento do espaço concedido devo registrar a minha felicidade por mais um encontro, desta feita, patrocinado pelos companheiros do PROPED-UERJ. Em Deleuze estão as marcas da filosofia em sua forma mais clássica. Vivemos um mundo novo, atravessado por ideologias bem distantes da simplória distinção que havia entre realistas e idealistas. Por isso é mais fácil cobrar dos que escrevem, numa comparação com os que somente falam, posicionamentos ideológicos para o atendimento às várias correntes derivadas do tronco original da filosofia clássica. Mas Deleuze não escreveu para a satisfação dos grupos. Deleuze foi um criador, um artista que sabia que a sua obra não agradará a todos. Essas são as principais características da filosofia hodierna e das formas de expressão que não foram pensados para o deleite de todos.