segunda-feira, 12 de setembro de 2011

ENEM 2010, VELHAS CANTILENAS.




*Antonio Eugenio do Nascimento

Os jornais de 11 de setembro de 2011 publicaram os resultados analíticos e os gráficos do Enem 2010, trazendo dados esperados e nenhuma novidade, apesar do crescimento do número de alunos. Pressionados pelas instituições que utilizam as suas informações para seleção de novos calouros, não restou também à classe dominante a debandada para os braços do ENEM, algo que, no início de sua edição, trazia consigo o cheiro e as marcas da pobreza.
Neste caso sim, parece ter havido um acentuado branqueamento do instrumento que começou avaliativo, mas ao cair nas graças da burguesia tornou-se seletivo. Os cursinhos que antes preparavam para o vestibular, agora preparam para o ENEM. Mais uma vez os subalternos viram solapar-lhes os instrumentos que poderiam garantir-lhes uma boa educação superior. Usaram o dinheiro público para colocar a classe dominante dentro das melhores universidades com a velha falácia de que as avaliações externas eram para melhorar a escola pública. Mas se isso fosse verdade, por que não aplicaram o dinheiro direto na escola dos mais empobrecidos? Este realmente não é um país sério.
Passadas algumas edições, começaram a aparecer educadores e economistas faladores, representantes da alta burguesia, procurando soluções para o fracasso da educação e os governos indo atrás de suas monótonas cantilenas. Gustavo Ioschpe, por exemplo, propôs que as escolas colocassem uma plaqueta na janela com as notas do Ideb. Já, já vai aparecer outro mais iluminado propondo escrever em letras garrafais a classificação do ENEM e todo mundo vai atrás parecendo uma manada de guinús ingênuos com medo de que os crocodilos lhes devorem os rabos. Pobre país.
Eu, em meus vinte e cinco anos de escola pública, assisti ao aparecimento de várias propostas elaboradas para ajudar aos menos favorecidos, serem incorporadas com incrível velocidade pelas classes A e B, mas no caso do ENEM, jamais imaginei que a coisa se daria com tanta rapidez. Com que facilidade os professores do São Bento, aquela fábrica de meninos tristes, assimilaram o exame e fizeram com que eles se tornassem campeões da jogatina pedagógica? Quando foi que algum educador desse país iria imaginar que a geração omeprazol do Santo Agostinho iria dormir pensando na prova do Enem? Quando foi que os mágicos que pensaram nesta modalidade de exame, ajustaram o teste de avaliação para uma forma classificatória (com pontos de 0 a 1000) colocando-o dentro das exigências das universidades? Precisamos ser mais honestos, isso não foi mera coincidência!
Das cem escolas que chegaram à frente, 97% são particulares e as três que não são também não são públicas. Servem-se do dinheiro público, mas são tão seletivas quanto as confessionais. Somente para exemplificar, a que fica mais perto de nós, o Colégio de Aplicação da UERJ, em tese, se destinaria à mesma clientela, mas os seus professores são melhores remunerados que os seus amigos pobres da rede pública estadual, suas dependências sanitárias não são tão fétidas quanto as das escolas públicas e nenhum de seus equipamentos se compara aos jurássicos mimeógrafos que ainda rodam as provas da meninada de várias escolas que funcionam pelo interior deste estado espoliado pelas mãos sujas de seus governantes.
Ademais, se era para constatar o óbvio para que gastar tanto dinheiro? Não era mais razoável, por exemplo, que deixassem a PUC continuar fazendo os seus exames de seleção? Não serão elas que vão se beneficiar das verbas públicas e particulares? Se da mesma forma, fosse para mais uma vez ficarem reclamando do baixo rendimento dos meninos das escolas públicas, por que não deixaram que as universidades públicas realizassem os seus vestibulares baseando-se no universo social dos seus futuros alunos? Por que não aprimoraram o sistema de cotas se o objetivo era garantir a ascensão social dos menos privilegiados?
Para ser mais objetivo, sequer precisaria que o discurso protetor fosse generalizado. Em alguns lugares isto nem é preciso pelo fato de existir uma pobreza homogeneizada que dispensa a aferição dos que precisam mais de oportunidade do que os outros. Em angra dos Reis é assim. A grande maioria dos alunos que frequenta o posto avançado da UFF é oriunda da rede pública esquartejada. A grande maioria dos que freqüentam os cursos das universidades semipresenciais, também vieram das escolas públicas. Em síntese se era para fazer do ENEM mais um vestibular, para que tanto trabalho? Para que dar oportunidade a tantas empresas golpistas que vivem vendendo provas para os mais espertos? Basta lembrar que, por duas vezes, a polícia federal teve que tomar conta dos tomadores de conta das provas e por outras duas o concurso teve que ser anulado por motivos semelhantes.
Tanto esforço com o dinheiro público para constatar que 96% por cento das escolas públicas não conseguiram atingir a meta mínima desejada e outras que, cansadas de se envergonharem de seus resultados, no ano passado, resolveram não fazer as provas. Existe ainda outro grupo que jamais aparecerá, por terem os seus conceitos caídos na categoria dos impublicáveis.
Tenham paciência companheiros professores universitários, principais idealizadores da nova maracutaia governamental. Todos estão atrás de conhecidos resultados. Talvez fosse mesmo mais fácil investir diretamente na escola pública e, quando sentíssemos que os nossos atletas estivessem em pé de igualdade, chamássemos a burguesia para um amistoso, como se faz no futebol. Ninguém monta um time de garotos e logo de cara convida o Barcelona para um confronto.
Quando nos apresentaram o ENEM eu pensei que era um treino. Cheguei a botar os meus alunos em campo, mas quando abri os olhos já estávamos no campeonato espanhol sem as mínimas condições de atuar na série B do brasileiro. Entramos pressionados no jogo, mas agora não dá para ficarmos pelos cantos reclamando dos pífios desempenhos de nossos atletas. E olhem que eu não pensava somente nos treinos. Achava que os organizadores da proposta fossem mandar calções, camisas, chuteiras, aparelhos para fortalecimento da musculatura de nossos atletas, essas latas de comida que parece farelo para engorda de suínos, médicos, dentistas, alimentação adequada e que aproveitariam a onda das olimpíadas para cobrir as quadras, fazer as raias de atletismo, construir as piscinas para relaxamento e outras necessidades para a formação de atletas de alto rendimento. Nada chegou até nós! Mais uma vez fomos enganados.
Agora, às portas do novo campeonato, quando as escolas federais públicas estão em greve, quando a rede estadual de ensino do Rio de Janeiro acabou de sair da sua jornada de paralisações na luta por melhores condições de vida e trabalho, os aquinhoados do PH, do Santo Agostinho e do São Bento já estão se exercitando para a estréia em uma competição desigual e que não foi pensada para eles. Será que os professores (mestres e doutores) que pensaram o ENEM, em algum momento, acharam que o Cambaúba, O CEAT, o São Bento precisavam de orientação para a formação de seus alunos? Sejam sinceros! Não! O ENEM foi criado para encher o governo de razão e a cada edição reforçar a convicção de que os professores públicos devem ganhar cada vez menos porque eles são muito ruins. O ENEM foi pensado para que os governos tivessem em mãos a defesa que eles precisam para dizer: Estão vendo como essas famílias desestruturadas e agora multifacetadas, não fazem nada para que seus filhos alcancem um patamar melhor. O ENEM foi pensado para que o governo tivesse em mãos um documento para justificar a sua omissão, não dizendo, mas pensando mais ou menos o seguinte: esses meninos que não estudam têm mesmo que freqüentar aqueles banheiros imundos e comer aquela comida fornecida por empresas de qualidade questionável. Uma escola com 2 no IDEB e 400 no ENEM, não merece muita coisa além do que já fornecemos.
Às vezes me ponho a pensar como ficariam as portas das grandes escolas públicas como o tradicionalíssimo Instituto de Educação do Rio de Janeiro, caso o governo federal resolvesse de imediato adotar a proposta do Dr. Ioschpe. Naquelas portas talhadas em peroba portuguesa, seria colocada uma placa imensa mais ou menos com as seguintes informações: MATERNAL 2; JARDIM 2,5; FUNDAMENTAL 1,9; ENSINO MÉDIO 320, cada uma dessas categorias, com as suas notas, espelhando o fracasso construído, em parte, pela roubalheira perene e que de certa forma ainda justifica os salários pomposos da cúpula que cuida da educação. Querem mais? Ainda tem gente por aí achando que o ministro da pasta mais achincalhada do governo central (e que deve receber o maior salário de nossa categoria), será o nosso futuro presidente da república. Deus tenha pena de nós!

*Professor da rede pública, mestre em educação pela UFF e autor , dentre outros, do livro A escola do aluno caminhador.

sábado, 3 de setembro de 2011

DE HOSPEDARIAS, ENSINANÇAS E APRENDIZAGENS




Ah... eu me lembro muito bem
Do dia em cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Pés cansados e feridos de andar légua tirana...

Antonio Carlos Belchior



O navio que nos retirou da seca não existe mais. Chamava-se Capela, uma embarcação tosca que, uma vez por mês, trazia os nordestinos de Sergipe para o Rio de Janeiro. Chegamos aqui em fevereiro de 1957: eu, uma prima e uma tia, a minha segunda mãe. Meu pai, lembro-me bem do dia em que partimos, resolvera ficar para, inconscientemente, protagonizar a saga dos que resistem e seguem justificando a máxima que nos engana ao longo da história: o sertanejo é antes de tudo um forte!

À nossa espera, sete dias mais tarde no Cais do Porto do Rio de Janeiro, além de uma chuça fina, estava o Tio José, que cuidadosamente viera nos buscar para que, em sua casa, fizéssemos a quarentena comum aos que chegar do nordeste. Trata-se de um hábito solidário da parentalha para com os retirantes, até que surja o primeiro emprego para aqueles que ainda podem trabalhar: uma espécie de incubadora curativa das mazelas causadas pelas dificuldades que enfrentam os que fogem da seca.

Do Porto até Vigário Geral, levamos quase duas horas em um ônibus engraçado com cara de porco que o povo chamava de lotação e cujo ponto final ficava na Praça Catolé do Rocha, bem perto do local da grande chacina que chocou o povo carioca e na qual, há cerca de 20 anos, perderam a vida mais de vinte trabalhadores. Mas o bairro, naquela época, em nada se parecia com o aglomerado de favelas que, hoje, começa no município de Duque de Caxias e vai seguindo o mar até as cercanias do cemitério do Caju, que fica no bairro de mesmo nome. Andamos mais quarenta minutos e pronto: já estávamos na casa em que passaríamos os primeiros quatro anos de Rio de Janeiro e, eu, os mais interessantes momentos de minha infância.

Além do medo da fome da fome, o nordestino que vem para o sul, traz a certeza de que seus filhos se salvarão do analfabetismo, uma praga da qual, a maioria dos adultos que vivem no polígono da seca, não tem a mínima chance de se livrar. Chegamos numa segunda-feira de Carnaval e um mês depois eu já estava matriculado na escolinha de Dona Maria do Carmo, uma senhora carrancuda de cuidava da alfabetização daqueles que desejavam ganhar um ano quando de seu ingresso da rede pública. Eu mesmo já entrei na segunda série, aos sete anos de idade, e lá permaneci até a conclusão do ensino primário, naquela época, o ponto de parada dos estudos da imensa maioria dos filhos das classes subalternas.

Para que tenhamos noção do abismo que havia entre os mais pobres e as escolas de ensino secundário e médio, em toda a região da Leopoldina, até o ano de 1971, só existia o colégio Gomes Freire de Andrade, quase chegando em Olaria, e o professor Clóvis Monteiro, entre os bairros de Bonsucesso e Higienópolis. Sem opção acabei indo estudar em escolas particulares, a essa altura, tutelado pela minha terceira mãe, uma prima mais velha que me adorava e morria de vontade de me ver formado. O ensino médio, quatro anos mais tarde, já fora bancado com o resultado de meu trabalho, como auxiliar de alfaiataria.

Entre idas, vindas e carência de quase tudo, passei toda a adolescência e parte da minha juventude no triângulo carioca que apresenta os piores índices referentes à qualidade de vida de seus habitantes; mais precisamente, no interior das linhas que delimitam os bairros de Vigário Geral, Pavuna e Acari, região que os sociólogos apontam e os números confirmam como uma das que detêm os piores índices de desenvolvimento humano do Estado do Rio de Janeiro.

Quando menino, meu desejo era ser cantor ou jogador de qualquer coisa. Na puberdade, as primeiras medalhas criaram em mim a ilusão de que poderia ser um Ademar Ferreira da Silva, mas tudo era muito distante e os sonhos iam-se dissipando. Restaram os pincéis, alguns conseguidos com os pintores de beira de estrada que, na Dutra, ficavam à espera dos motoristas que desejavam personalizar as suas máquinas transportadoras. Ficaram em mim as mulheres nuas devoradas pelas águias, um realismo mágico distante dos tratados de Breton, Duchamp ou Dalí, mas foi ele quem acabou me empurrando para os cursos de desenho e , quando o dinheiro sobrou, para o Departamento de Artes e Arquitetura do Instituo Metodista Bennett, já no ano de 1974. No ano seguinte casei-me com o amor de minha adolescência e dessa união nasceram Gandhi e Iuri, meus dois filhos naturais, que também são professores.

A escola onde fiz meus estudos de nível superior era um espaço para os filhos da pequena burguesia. Ainda assim devo reconhecer que era nela que me escondia da ditadura cambaleante no início de minha militância político-partidária. Em seus amplos e agradáveis espaços, conheci Augusto Rodrigues, Lauro de Oliveira Lima e Noêmia Varella. Por tanto ouvi-los, acabei apaixonado pela profissão que escolhi, muito embora os dez primeiros anos de minha vida profissional tenham sido, por necessidade financeira, transcorridos em meio a uma correria atrás da calculadora, da prancheta e dos pincéis, instrumentos que, neste período, ajudaram a sustentar a minha pequena prole. Somente em 1984, sem abandonar totalmente a pintura, fui fazer aquilo que mais gostava. Comecei a lecionar e, no ano seguinte, entrei, através de concurso público, para a rede pública de ensino do município do Rio de Janeiro. No plano político, o País reconquistava a democracia, mas os profissionais do magistério amargavam com os baixos salários e as péssimas condições de trabalho. Quando percebi estava praticamente morando no sindicato e, sem nenhuma percepção muito clara do que aconteceria mais à frente, ia me tornando educador.

Exponho neste memorial a parte mais interessante das coisas que, coletivamente, produzimos eu e os companheiros que fui fazendo ao longo de minha história estudantil e profissional. Afora a pintura, que carece de um exercício de solidão, todas as outras coisas bonitas que vi acontecer, foram feitas a dezenas de mãos: da cerâmica de Selma Calheira que quase me arrebata e que me pôs numa perene órbita em torno do Barro, à bela e romântica arquitetura de Cláudio Cavalcanti, um pernambucano com quem trabalhei em um agradável espaço da Siqueira Campos, bem junto ao mar de Copacabana. Isso sem falar nas inúmeras ações que empreendemos pelas escolas do Rio de Janeiro e nos interstícios da luta sindical que, em última instância, objetivavam a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro.

Foram esses aglomerados humanos produtivos, aos quais os franceses chamam de atelier e os americanos de bureau, que me ajudaram a construir, no cotidiano escolar, os aportes de meu trabalho político pedagógico e a alicerçar, não um modelo, mas a forma de lidar com a filharada das classes populares. Um trabalho que procura historiar as virtudes da cooperação contrapondo-se à lógica utilitarista que vê a competição como a forma mais simples e direta de fazer com que a sociedade possa caminhar para patamares mais confortáveis, especialmente quando o tema em pauta é a melhoria da qualidade de vida da população.

Podia ainda contar muitas histórias, mas as três últimas décadas, tempo em que vivi entre o sindicato e a escola, foram feitas de dias muito difíceis, tanto para a população que precisa da escola pública, quanto para os profissionais que apostaram nas promessas de todos os governos que passaram pelo estado e pelo município do Rio de Janeiro. Dizer que a escola piorou, nos aproxima mais da verdade do que tentar convencer a alguém de que algo melhorou desde 1982, quando tomou posse em nosso estado o primeiro governador eleito na agonia do regime ditatorial. Ainda sonhamos com um piso de cinco salários mínimos para os professores e três para o pessoal de apoio. Em nenhum momento conseguimos, aproximar os nossos rendimentos desses valores.

Olhando para além dos benefícios classistas, tudo é ainda mais desanimador. Quando comecei a dar aulas, o município do Rio de Janeiro contava com uma rede de 1035 escolas para o ensino fundamental. Quase 30 anos depois, com a população crescendo, em média, 1,0% ao ano, o número de escolas, já com os Cieps incorporados por conta da municipalização, aumentou para 1065. Um aumento percentual de 3% quando o crescimento da população foi de mais de 20%, no mesmo período. Éramos 5.100.000 em 1982, somos, hoje, cerca de 6.350.000, pelos últimos dados do IBGE. Para que a escola continuasse funcionando mergulhada em sua precariedade, dezenas de pequenos golpes foram dados na população fazendo com que entrássemos no século XXI desnorteados com os resultados que medem a qualidade de nosso ensino público. Um deles, para mim o mais bem aplicado e grande responsável pelo estado de calamidade educacional de nosso estado e de nosso município, foi a estúpida decisão da gestão César Maia, de reduzir o número de tempos de aulas diárias de seis para cinco. Imperceptível a falcatrua, mas com um só movimento ele evitou a contratação de cerca 6.000 professores e a construção de 150 escolas, números que pelas projeções estatísticas, não tirariam da lama, mas oxigenariam a rede de ensino mais complexa do continente.

Apesar de todos os embustes, permaneci na rede pública municipal por mais de 11 anos. Na rede estadual, tive o mais interessante projeto em minhas mãos, ao lecionar por três anos em uma escola tradicional de formação de professores, mas abandonei o emprego quando percebi que existia e ainda, de todo, não se dissipou o desejo latente, nos governantes que desde 1982 por aqui passaram, de fazer com que morram à míngua todos aqueles que se licenciaram pensando em dar aos filhos da classe trabalhadora um ensino de melhor qualidade. Pelo menos um, que gostava muito de crianças, num arroubo de insanidade, disse isto textualmente e completou: vou fazer a promoção automática para que as crianças não dependam mais de vocês!

Caminhando sobre pedras lisas e escorregadias, cheguei, em 1992, também através de concurso público, à escola pública do município de Angra dos Reis. Vivíamos um momento de esperança, de realização de sonhos e da colocação em prática de novos experimentos em uma escola administrada ideologicamente pelo partido que ajudamos a construir e que, mais recentemente, nos trouxe tantas decepções. Apesar dos entraves causados pelas vaidades inerentes a todas as formas de poder, foi esta rede que me deu as maiores oportunidade de desenvolver e coordenar projetos para a criançada mais arredia frente às exigências da escola tradicional. Um deles, de correção de fluxo, que durou pelo menos seis anos (de 1998 a 2004) em governos de diferentes matizes ideológicos, é o inspirador do meu projeto de tese para o doutorado.

Em 2000, quando deixamos a Secretaria de Educação por conta da primeira derrota política no município, retornei à Universidade para a realização do meu curso de mestrado. Em seguida, passei cinco anos na Universidade Estácio de Sá, no departamento de didática e gestão. Atualmente, além do meu ofício na escola de ensino fundamental, trabalho com dois grupos de cultura popular da região sul-fluminense (Cirandeiros e Pescadores de Tarituba e Comunidade Quilombola do Bracuí) e um do município do Rio de Janeiro (Comunidade Festiva de Bumba-Meu-Boi Brilho de Lucas) espaços de vivência comunitária e experimentos onde, juntamente com as escolas públicas por onde passei, deveremos realizar os estudos para a consecução dos estudos de doutorado.


Antonio Eugenio do Nascimento






segunda-feira, 22 de agosto de 2011

AS VIRTUDES DO JOGO: FUSÃO DE ARTIGOS
















Quando você chegar,
é mesmo que eu estar vendo você
sempre brincando de velho,
me chamando de Pedro,
me querendo menino que viu de relance,
talvez um sorriso em homenagem a Pedro...
Moraes Moreira & Galvão


A escola pública brasileira comporta um expressivo contingente de meninos e meninas vitimados (as) pelo decantado fracasso escolar, fenômeno, ainda sem responsabilidade definida, mas causador de uma progressiva perda de interesse pelas ações desenvolvidas no espaço de educação formal que se convencionou chamar de escola. Essas percepções nos impulsionaram à produção de inúmeras estratégias extraídas dos jogos populares visando o redirecionamento do olhar de alunos e professores para outras formas de construção de conhecimentos. Portanto, um dos objetivos deste trabalho é, em médio prazo, contribuir para a edificação de um espaço escolar produtivo, orientado pelos signos da cooperação e da solidariedade, aproximando o discurso acadêmico da ludicidade que advém das práticas cotidianas.








Insistimos neste tema porque, muito embora saibamos que o termo lúdico seja bastante utilizado nos espaços de formação pedagógica, as formas mais tradicionais de jogos e brincadeiras, por razões dogmáticas ou por desleixo das esferas que cuidam da educação, não adentram a sala de aula da escola engessada e silenciosa. Passamos o século XX estudando as novas pedagogias, mas ao fechar da primeira década do século XXI, a pergunta mais ouvida nas reuniões escolares ainda é: o que é que eu posso fazer com essas crianças que não aprendem?




Sabemos, também, que ludo e jogo, apesar da diferença léxico-fonêmica, têm o mesmo valor semântico. A palavra jogo originada do latim jocus (coisa jocosa, gozação) tardiamente foi ocupando o espaço do vocábulo ludus como conceito definidor do jogo da vida, do jogo do amor, do jogo de cintura, do jogo de interesse, de azar ou de sorte, etc. Ludo está mesmo relacionado com a essência da vida em contraposição à palavra luto (luctus). Ludo é chama, riso, vida. Luto é dor, sofrimento, morte. O estar de luto representa sempre algo muito triste, a perda dos mais queridos ou em, determinadas ocasiões, atos de protesto pelo fim de alguma situação incômoda. Ludo, portanto, é a melhor definição para o estado de felicidade e para o aprendizado das primeiras regras solidárias de convivência. Daí a grande preocupação (pelo menos é isso que se ouve) com a ausência de ludicidade no espaço pedagógico.








Neste sentido, a questão que está posta para discussão gira em torno das ações que precisam ser desenvolvidas na escola visando o fomento de várias atividades motivadoras que garantem uma boa aprendizagem. A informação só sensibiliza o organismo que está preparado para recebê-la. Assim sendo, podemos concluir que, dentre os movimentos que podem contribuir para o acontecimento do aprendizado dos números (e de várias outras formas de linguagem), um deles é resultante do encontro das estratégias que adotamos com um organismo motivado pelos signos da ludicidade.



Como vimos pelas primeiras conversas, este artigo está longe do status de uma obra de vanguarda. Possivelmente nada do que nele está escrito pode ser definido como novidade pedagógica. Além disso, estamos bem longe da idade média, tempo em que os jogos infantis eram considerados coisas do Demônio. Hoje grande parte da sociedade já pode compreender o quão importante são os jogos e as ingênuas brincadeiras infantis para o pleno desenvolvimento de seus queridos rebentos.

É preciso, no entanto, que não nos esqueçamos de que uma parte dessas mudanças deve-se às almas inquietas de Pestalozzi e Fröebel e aos artífices da Escola Nova, liderados nas Américas por Dewey e na Europa por Freinet e Montessori. De comum entre eles o desejo de que a escola fizesse, mais freqüentemente, uso dos apetrechos lúdicos, capazes de contribuir para a melhoria da qualidade das atividades nos espaços de domínio acadêmico. Na sequência, os construtivismos de Piaget, Vygotsky, Ferreiro e Kamii abririam novos caminhos para a compreensão dos fenômenos que interferem na aprendizagem, mas não se afastariam um milímetro da escola lúdica. O jogo tornava-se consensual quando o assunto em discussão girava em torno das estratégias que deveriam ser construídas pela escola contemporânea objetivando não só a melhoria dos aspectos relativos à cognição, mas a edificação de uma instituição regida pelos signos da afetividade.

Os segmentos menos favorecidos da sociedade do século XXI sabem de suas conquistas, mas ainda lutam pela melhoria da qualidade do ensino de sua imensa prole. Percebe a dicotomia entre a prática e o discurso, mas não possuem os instrumentos capazes de unificá-los. Essas considerações, de certa forma, contribuíram para a construção de inúmeras estratégias de ensino, mas não evitaram que chegássemos ao século XXI fazendo a mesma pergunta: Por que, apesar do desenvolvimento dessa nova consciência, o jogo, instrumento abençoado pela teoria, é tão pouco utilizado nos interstícios da escola popular? Quais são as causas do engessamento pedagógico da instituição criada para promover a equalização das oportunidades?

Procurando respostas para esses questionamentos, resolvemos discorrer sobre as virtudes do jogo no sentido de trazer para o nosso lado, aqueles que ainda o percebem como um meio sinônimo de vício, um dogma que tem origem na preocupação do cristianismo em evitar as máculas e os pecados da jogatina que impediriam os seus devotos de chegar ao reino dos céus.

Criou-se ao longo da história cristã a imagem de um Deus sisudo e pouco afeto a brincadeiras. Mas o que percebemos, com mais clareza nos dias de hoje, pelas representações impressas nas auras das entidades sagradas, são formas alegóricas repletas de cores, sons e gestos. Isto nos permite concluir que as divindades, como a maioria dos homens, também jogam entre si e torcem para que seus seguidores sejam felizes como os putos e anjos brincantes gestados pelas próprias santidades para cuidar da alegria do mundo. Em síntese, este é também o desejo de brincantes e trabalhadores.

O ato de brincar faz parte da natureza animal. Somos (homens, mulheres, borboletas, cavalos, andorinhas, cães e gatos) componentes de um reino de natureza animada, qualidade que nos distingue de vegetais e minerais. Os vegetais têm um ciclo de existência parecido com o nosso (nascem, crescem e morrem), mas não produzem movimentos espontâneos e/ou inteligentes nem apresentam indícios de que possuam sentidos capazes de estabelecer com o meio circundante diálogos que expressem tristeza, dor, prazer ou alegria. Todos os outros elementos existentes na grande aldeia são minerais: seres inertes em mórbido estado de espera do inexorável encontro, com aqueles que um dia tiveram vida: As árvores, os passarinhos, os comerciantes e nós.

Desta forma, podemos tomar o movimento (animação) como a principal característica do reino ao qual pertencemos e consequentemente das espécies às quais estamos biologicamente ligados (as) por semelhança física, orgânica e reprodutiva. No entanto, cessam, com o sopro da vida, as visíveis e científicas aproximações entre humanos e o conjunto totalizante dos seres irracionais. Isto porque, homens e mulheres são animados (as) e intelectuais; brincam, pensam e trabalham. E quando trabalhamos empreendemos um tipo de ação que nos transforma em seres singulares, únicos habilitados pela natureza à produção cultural.




No princípio era o movimento...
...depois vieram, além dos dias e das noites e não exatamente nesta ordem, o amor, a comida, o brinquedo e o trabalho. Somos brincantes e trabalhadores permanentemente desconfiados da veracidade da afirmação bíblica de que a luta pela sobrevivência é uma criação divina à guisa de castigo pelo ato sexual não consentido e simbolicamente representado pela célebre história da comida indevida da maçã.



Exageros, pilhérias e falhas à parte, o que está implícito nessa passagem cristã, é a natural vocação de homens e mulheres para o prazer, o fazer e o brincar. Este fato nos leva a crer que o simbolismo da ordem de expulsão de Adão e Eva do paraíso, pudesse ser resumido na seguinte frase: Ide! Amai, fazei e brincai!



Esta é a trinca verbal que nos unifica e ao mesmo tempo faz com que desconfiemos das pessoas que não amam, não brincam e não trabalham. A ausência de desejo para a consecução dessas três ações é objeto de inúmeros ensaios psicanalíticos e causa em nós, estranhamento diante dos anômalos (quase mortos) que consideramos passíveis de tratamento e, de certa forma, perigosos para a vida em grupo.

Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé

Estudos biológicos e psicanalíticos recentes, sobre o comportamento humano, indicam que a necessidade de procriar, brincar e produzir, síntese das ações expressas no período anterior, vem impressa em nosso mapa genético da mesma forma que os pássaros trazem no organismo a forma de seus ninhos. Ao DNA do João-de-Barro, por exemplo, já vem acoplada a receita para a construção de sua casa e a lista dos materiais que ele terá de transportar para o espaço que servirá tanto para o início da vida de seus filhos, quanto para o aprisionamento involuntário, que, quase sempre, leva à morte a sua inestimável companheira. Já em nossa escada helicoidal, além de milhões e milhões de outras coisas, está escrito em letras garrafais: A ordem é brincar!
Passamos a nos diferenciar de cobras e lagartos quando produzimos visando o aprimoramento dos objetos de uso cotidiano. As habilidades que adquirimos fizeram com que gradativamente fôssemos catapultados a patamares cada vez mais distantes de todos os nossos companheiros de reino, mas sabemos que, no que se refere ao aspecto físico, não somos lá muito diferentes de emas e avestruzes.



Tais constatações nos levam à crença de que o diferencial maior somente torna-se visível quando nos capacitamos, entre brincadeiras e ofícios, para o empreendimento de melhorias no espaço vital (o habitat). Esses acontecimentos devem-se em grande parte à generosidade da natureza, principal responsável pelo sucesso de nosso mais belo salto ao patamar em que hoje nos encontramos: Societariamente organizados para o consumo e para o prazer que advém da produção material (trabalho) e da fantasia (jogo e brinquedo) que garantem a saúde física e social das coletividades.



Já pensando no fechamento deste artigo, é preciso considerar, também, que o distanciamento entre trabalho e brinquedo é meramente semântico. Em essência, é muito tênue a linha que separa as duas ações. Seja pelo fato de as crianças não perceberem as brincadeiras e jogatinas como um não trabalho ou coisa de criança, seja pelas inúmeras formas de jogos incorporadas ao acervo laboral dos adultos para o simples deleite da alma.



Por tais razões, e por várias outras não tratadas neste trabalho, se mantêm atuais as considerações de Freire (1993), Bakhtin (1993) e Vygotsky (1991) sobre a relevância da festa, do jogo e da fantasia como instrumentos propiciadores da felicidade coletiva. Ao incorporarmos, à nossa visão pedagógica, a premissa de que a saúde da mente implica em saúde do corpo, é nosso dever, na qualidade de educadores, contribuir para que os espaços ampliadores dos saberes também se empenhem na construção de formas mais prazerosas de construção do conhecimento que se apresentam tanto nos exercícios primários que advém de nosso espírito lúdico, quanto nas variadas formas de trabalho que se distanciam da tortura, curam, emancipam e libertam.





BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade médio e no renascimento. São Paulo, Hucitec, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo, Paz e Terra, 1993.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

terça-feira, 7 de junho de 2011

BEM FEITO! QUEM MANDOU BOTAR SEU FILHO AQUI?


IMAGENS GOOGLE










Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e a dos anjos,
se eu não tivesse a caridade,
seria como bronze que soa ou
como címbalo que tine...
São Paulo

Era mais ou menos isto que queria dizer a nota (aos pais), publicada pelo Colégio São Bento. A Igreja Católica da América Católica é uma das poucas instituições que insiste na prática de seus crimes, seus pequenos delitos, vomitando suas incoerências, certa de que a figura do perdão foi criada para uso daqueles que dela necessitam. Somente assim podemos compreender como depois de tantos pedidos internacionais de desculpas, alguém ou alguma instituição possa manter a sua prepotência em alta, como faz a Igreja Católica e suas derivações.

Quem lê a nota do Colégio São Bento e não conhece a história da Igreja deve pensar: esses padres são bons mesmos! Já no início se valem do belo poema, supostamente escrito por São Paulo (trecho em epígrafe) com o propósito de atenuar as dores de muitos causadas pela eterna omissão. E vejam bem! Não escrevo torcendo para que alguém abra mão de suas crenças. Sou filho de família cristã, passei toda a minha infância na Igreja e acho mesmo que dogma religioso não se discute.

No entanto devo também dizer que, de alguma forma, a humanidade precisa acordar e, como fiéis atentos, evitar que a Igreja continue a cometer os seus erros, sem que sejamos firmes nas críticas. Firmes na construção de novos caminhos, para uma entidade religiosa que poderia fazer um pouco mais pelo bem da humanidade.

A nota do colégio divulgada para atenuar o seu desleixo para com as relações intra-colegiais, utiliza um parágrafo para se solidarizar com a dor dos pais do menino agredido e, afora pequenos outros relatos a guisa de confissão de culpa, o resto da carta parece dizer claramente: o São Bento é um colégio confessional. Quem botou seu filho aqui leu o estatuto. Quem não estiver satisfeito, que procure outro colégio. São minhas essas palavras, mas confesso que não consegui entender outra coisa ao ler aquele arrazoado de prepotências.

Para quem não conhece o São Bento, é interessante uma leitura sobre o seu contexto geográfico (o histórico está na nota que circula na WEB). O magnífico colégio, por onde passaram as mais importantes cabeças pensantes para o bem e quase sempre para o mal deste país, fica na Praça Mauá, bem em frente à famosa zona de prostituição que se notabilizou no século XX e que hoje, apesar de bastante reduzida, ainda faz a alegria daqueles que se iniciam (sem precisar tornar público) na sua vida sexual. A dos pobres era na rua Pinto de Azevedo, a dos que tinham algum dinheiro, era mesmo nas boites da lasveguiana e empobrecida vida noturna do Pier Mauá.

Hoje, um imenso prédio espelhado atrapalha o encontro dos olhares dos meninos com as prostitutas de olhos roxos que cambaleiam pelas manhãs depois das noites insones, mas no passado, um prédio construído no século XIX, com jeito de castelo das bruxas, permitia a vista erótica para o deleite da filharada da pequena burguesia carioca e fluminense.

Essas são as recordações de minha adolescência e juventude, parte delas como observador participativo. Quantas vezes saíamos dos inferninhos, quando a rapaziada santificada chegava para as primeiras aulas do dia? Via aquilo com certa inveja, mas no mesmo momento, como gatos andarilhos, comemorava a liberdade de, em plena ditadura, poder estar circulando pelos espaços sujos e excitantes da Praça Mauá.

Mais tarde, tomei conhecimento de algumas outras peculiaridades do São Bento, a principal delas dizia que ali não havia vagas para moças. Às gargalhadas comemorava não ter estudado em coisa tão entediante. Imaginem o que é passar o período mais gostoso de sua vida, em tempo integral, sem uma mulher por perto. Delirava, ao lembrar-me de Elisângela, a bela de olhos verdes que estudava no meu jardim de infância suburbano e que aos seis anos de idade morríamos de paixão e de ciúmes. Minha Nossa Senhora, como imaginar que toneladas de hormônios masculinos pudessem ficar por tanto tempo represados, as adrenalinas, as meninas e todas as outras coisas femininas que fazem da nossa infância/adolescência o mais interessante período de nossas individualidades. Ninguém é feliz sem ter sido feliz neste sublime momento de nossas vidas!

Sobre o caso das agressões que motivou a nota do São Bento, a revista Veja da semana que fechou em 4 de maio, trouxe alguns depoimentos de ilustres que passaram pelo colégio. Quase todos trazem boas recordações, mas relatam as brincadeiras perversas que já existiam em meados do século passado. Ora, o que fazer com tantos homens juntos, às portas da maturidade sexual, às portas de seus primeiros desejos e sem o lado feminino para o exercício do olhar faminto? É possível que as rasteiras nos mais fracos, fazer com que os pequeninos comessem papel, os cascudos e as passagens de mão nos órgãos genitais, fossem utilizados como uma saída para atenuar as dores causadas por proposta tão arcaica. Também não sei se existem outros colégios que não admitem meninas, mas saibam os pais que colocam seus filhos em colégios com essas restrições, que estão dando aos seus queridos rebentos o pior presente de sua vida. É possível também que este seja o único ponto causador de inveja, nos alunos do São Bento, dos meninos e meninas das escolas públicas saindo agarrados e aos beijos, comemorando a felicidade de poderem estudar juntos. As crianças não têm nada a ver com o celibato dos padres.

Mantêm-se o Colégio São Bento como uma ilha de excelência intocável em seus princípios, inclusive naquilo que diz respeito ao cumprimento das leis. É como se toda a discussão a respeito do Bullying servisse apenas para as escolas públicas. Para além da percepção do colégio sobre as qualidades do menino agressor a instituição deveria ter feito as devidas notificações junto aos órgãos competentes: DPCA, Conselhos Tutelares ou Juizados de Menores. Tanto a lei federal quanto a estadual estão na WEB à disposição de todos, ricos e pobres. Basta cumpri-las.

LIVROS ERRADOS: A CULPA É DO GOVERNO!





Gosto de escrever e escrevo sistematicamente. Venho publicando, nos últimos dez, pelo menos um livro a cada dois anos e tenho a preocupação de submeter o meu trabalho a dois revisores. O primeiro sempre levanta mais de cem erros, o segundo mais dez e o livro, para meu desespero, ainda sai com quatro ou cinco erros das mais diversas procedências e qualidades. Nada diferente do que vem ocorrendo com os livros do governo. Ou melhor, com os livros que o governo compra com o sacrifício de nossos salários.


Esse fenômeno passou a ser notado, desde que o poder central, através do FNDE, passou a comprar os livros didáticos para todo o país. De uns dez ou quinze anos para cá, O MEC transformou-se no maior cliente para este tipo de produto, aplicando bilhões de reais todos os anos em material para distribuição aos alunos das escolas públicas. Mais ou menos nesta época, começaram a aparecer os problemas. Quem é professor, está cansado de pegar erros grosseiros e de assistir a um variado cardápio de plágios que, de vez em quando, carrega para outro livro até os erros cometidos no primeiro, como prêmio ou castigo pela audácia da cópia.


A primeira questão que se coloca é de fundo didático-pedagógico motivado pelas interesseiras contradições que permeiam o mundo acadêmico. Todas as pessoas que fazem parte das tais comissões de avaliação do livro didático sabem que, no mínimo são coniventes com a corrupção que se instalou para facilitação da entrada dos incautos em um mercado tão concorrido. Por isso contrariam os seus próprios princípios e os princípios das academias, nas quais aprenderam todas as lições, quando aprovam livros para que sejam utilizados por meninos e meninos habitantes das mais diversas realidades. Todos (as) sabem que o livro da Ilha de Marajó não tem muito sentido quando lido pelos meninos da Lagoa dos Patos, mas com tanto dinheiro em jogo, quem é que vai contrariar a organização.


A outra questão diz respeito aos prazos para confecção dos livros. Como o MEC precisa montar as falsas licitações e fazer com que os professores escolham o material em uma lista fechada, passou também a exigir prazo aos fazedores de livros e estes para atender aos chamados do MEC, passaram a confiar demais nos computadores desprezando a atuação de um profissional muito importante para este tipo de trabalho que é o revisor final. Os jornais diários, também tomaram essa decisão, mas sabendo dos erros que cometem cotidianamente, criaram uma coluna para correção e justificativa de seus próprios erros. Ressalve-se ainda que um erro gráfico no jornal, não deve ser entendido como coisa tão grave quanto nos livros dos pequenos aprendizes.



A terceira questão, está diretamente ligada à natureza humana que, ao vislumbrar a possibilidade de lucro imediato, despreza a ética, fazendo livros às pressas para atender ao chamado das fraudulentas concorrências muitas vezes patrocinadas pelo capital estrangeiro das dezenas de editoras que passaram a ver nesta terra de ninguém um espaço privilegiado para o aumento de seus lucros. Assim procedem porque sabem que os rombos somente aparecem quando mais um ministro que ficou rico ilicitamente chama à nossa atenção para a existência perene da nefasta corrupção ou quando alguma empresa sente-se prejudicada pela quebra dos acordos firmados.


Não faz muito tempo, o próprio MEC tomou conhecimento de uma leva de livros que apareceu em uma lixeira nordestina, depois o caso caiu no esquecimento. O governo sequer tem vergonha de, ao final do ano, exigir que os meninos devolvam os livros que usaram e que ficaram cheios de boas recordações, quando ele mesmo sabe que toneladas do produto não utilizadas acabam pelos sebos ou nas guilhotinas das empresas que compram papéis velhos, fruto de aquisições super-dimensionadas, para que ninguém viole os espúrios acordos firmados. Com relação aos livros da lixeira do nordeste, o próprio MEC ficou de investigar, mas deixou cair no esquecimento e até hoje não sabemos quem foi o responsável pelo achado macabro.


Quero dizer com isso, que os recentes erros de português e matemática são frutos desses apressamentos governamentais. O que está errado no livro de português que dividiu a linguística brasileira, não é o fato de o livro dizer que podemos utilizar uma ou outra forma de fala ou escrita, mas, a meu ver, faltou texto para a explicação ou para ser mais sincero, um pouco mais de erudição para o entendimento daquilo que os escritores queriam dizer. Também no caso do livro de matemática a pressa para que o dinheiro chegasse mais rápido na conta da empresa fornecedora fez com que o matemático não visse que a diferença entre dez e sete não tem o número quatro como resultado. Ou alguém, depois de ler a matéria de O Globo, ficou pensando que o professor não soube fazer a continha de diminuir?


Não! Todos sabem de tudo, mas o governo abriu as portas da corrupção às pressões da indústria de livros e nós professores deveríamos pagar por nossos erros quando ficamos com os olhos vidrados sobre aquele amontoado de besteiras escritas naqueles grossos exemplares que chegam, de vez em quando, para meninos e meninas da escola pública. Os livros para as quintas-séries (agora sextos-anos) engrossam a cada ano e já começam a ficar parecidos com os vade-mécuns das escolas de medicina e direito. Começo a achar que o governo paga pelo número de páginas. Imaginem o que é perceber em um livro de matemática uma série de exercícios repetitivos, quando todos sabem que o conhecimento não se constrói pela quantidade de vezes que uma determinada equação é refeita. Com todo respeito aos autores, mas dentro da linha da repetição para memorizar, o Método Kumon é melhor e consome muito menos dinheiro e papel.


Depois , como ninguém cobra, fica aquela metade final do livro com os temas de geometria que as crianças nunca viram ou testaram. Ora porque os professores de matemática não gostam muito de geometria, ora porque os governos não se preocupam com a compra dos instrumentos que possibilitariam às crianças os primeiros movimentos com os artefatos criados pelo homem para as aferições de natureza prática. Quantas crianças ou adolescentes terminam o segundo grau e nunca usaram um compasso? Quantas nunca fizeram uso correto de um par de esquadros? Mas os livros estão lá repletos de belas imagens coloridas (para aumentar o preço do embrulho) à espera da fogueira na qual, mais tarde, de uma forma ou de outra, irão arder.


O que lamento, é o fato de os mesmos professores que nas universidades enchem a boca para falar em diversidade cultural, construção do livro didático apropriado para cada realidade, ao chegaram às tais comissões esquecem-se do que aprenderam/ensinaram e colaboram para a evolução do besteirol que, gradativamente, quando vai tomando conta dos livrinhos da garotada.


Para além das questões referentes aos erros que motivaram a discórdia, restam os problemas de plágio de texto e imagem, mas creio que isto diz respeito aos autores. Os livros, acompanhando a forma de produção dos automóveis e dos dicionários, vão ficando cada dia mais parecidos, nos títulos, nas figuras reutilizadas, nos textos semi-copiados para a realização do decantado fracasso. A queda do muro de Berlim derrubou ideologias, posicionamentos e posturas. Todos devem pensar e agir, mais ou menos do mesmo modo. Todos devem atender ao chamado do poder para alguma dobra, com a garantia de que todos sejam aquinhoados com alguma sobra. Aprendemos a preferir o silêncio, a concordar com as propostas sem que saibamos sobre suas procedências e intencionalidades. O livro didático, com seus erros e acertos, é apenas uma parte da pasteurização ideológica que faz com que todos nós fiquemos bastante parecidos, inclusive no espanto diante de algo que foi criado e organizado para este mesmo fim. Mas se é assim, por que o espanto?

sexta-feira, 3 de junho de 2011

PROCURANDO COMPREENDER DELEUZE

PROCURANDO COMPREENDER DELEUZE

Antonio Eugenio do Nascimento*

Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário nas pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável.
DELEUZE

Contraditória, interessante, sedutora, aberta a todos os possíveis assim é a filosofia. Aberto a todos os possíveis, sedutor, interessante, contraditório assim é Deleuze. Logo na primeira vez em que estivemos juntos por conta das leituras que fazia para ajudar ao filho mais novo no fechamento de seu trabalho de conclusão de curso, percebi que não estava diante de um filósofo preocupado apenas com verdades ou quebras de sofismas. Para Deleuze, filosofia é criação e isto, como em Platão, faz com que arte e filosofia se enrede numa única teia cuja razão de ser é a criação. Mas, para manter a coerência, a primeira letra de seu abecedário nada tem nada a ver com a arte, talvez o melhor conceito para começar o emblemático trabalho. Deleuze, ou seu entrevistador, optou, logo de início, pela natureza dos animais, não como um apaixonado por eles, mas como um anti-Cora Rónai a praguejar contra as manias de caninos e bichanos.


... não gosto dos roçadores, um gato passa o seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal.

Para a arte, que ficou sem letra, restou o serpentear de suas proximidades com a filosofia por entre os conceitos que, entre risos e carrancudices, vai discorrendo para o deleite dos que o assistem.
Aprendemos, e acho que esta é a principal virtude do abecedário, que Deleuze não é o revolucionário clássico que ensina a pegar em armas e bastões para transformar o mundo. Filho de pequenos burgueses, nascido na França nos arredores de Paris, o que se percebe em seus arroubos durante a entrevista é um certo ar de deboche para com esse tipo de revolução e para com todas as ferramentas necessárias para a sua construção.


... a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. (...) Imagine meu pai que era meio “Cruz de Fogo”... Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta.


Neste ponto Deleuze distancia-se de Foucault, de Sartre e de dezenas de pensadores europeus que na encruzilhada de mais difícil travessia do século XX preferiram estar nas ruas, quase sempre junto com a juventude gritando por casa, emprego, pão e liberdade. Nem por isso, aqueles que passaram a vida nas praças a reclamar das injustiças, deixaram de curvar-se à brilhante retórica do falastrão, irônico e inteligentíssimo amigo de Félix Guattari.


Esse prazer de falar de seu distanciamento do movimento das ruas não seria notado, se não fosse ele mesmo o expositor de sua opção pelo conservadorismo que resolveu alimentar, tanto quanto professor, tanto como cidadão. Deleuze é um intelectual conservador até mesmo no contraponto que faz à contemporaneidade antropológica que não admite a possibilidade de existência de homens ou mulheres incultas: havia uma burguesia culta, mas minha era inculta. Completamente inculta dizia ele, como se fosse possível alguém sobreviver e manter a sobrevida de alguém na condição de um ser totalmente inculto. E vejam que estamos tratando de indivíduos excepcionalmente letrados e produtivos, como seu pai um engenheiro curioso e inflador de zepelim. Mas o que seria da filosofia se não provocasse em nós essas doces iras?


Essa forma de captar palavra, sem tempo para reflexões, evita a nossa censura, desnuda o indivíduo. O abecedário é mais rico pelas contradições expostas do que pelas informações prestadas a respeito dos sucessos. No entanto, é preciso que façamos os filtros já que palavras ditas desta forma nem sempre são muito confiáveis. O próprio Deleuze, já prevendo a possibilidade de uma enxurrada involuntária de inverdades, incoerências e contradições, pediu que o abecedário de cento e tantas páginas somente fosse publicado após a sua morte, algo facilitado pela violência cometida contra si, se a memória mim não trai, apenas um ano após a divulgação consentida da famosa entrevista.


Responder a uma questão, sem ter refletido, é algo inconcebível para mim. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte.


Este foi o acordo firmado entre ele e o produtor do abecedário, mas a generosidade de Deleuze fez com que o produto fosse ao ar, em uma televisão alemã, pouco tempo antes de sua morte.
Também são belas e confortantes as exposições sobre Nietzsche e Spinoza ao tratar da alegria que contraria os princípios da religião e que rega a criatividade indispensável à existência do jogo e da arte. Intuo que essas certezas, de alguma forma, tenham contribuído para a terrível, mas coerente escolha de Deleuze em não esperar pelo fim natural da vida, se é que, à coisa tão medonha, podemos chamar de natural.


Caminhando um pouco mais, vamos compreender o distanciamento ou o ceticismo de Deleuze para com as causas e os resultados do fenômeno político e social chamado de revolução. Na letra R a escolha foi para o vocábulo resistência, um conceito largamente utilizado por Deleuze para falar sobre a importância do conceito. Criar conceitos é resistir. Criar é resistir. Para Deleuze é uma ingenuidade cogitar-se sobre a morte da filosofia. Segundo ele, da mesma forma que a ciência cria funções a filosofia cria conceitos e nesta criação está a razão de ser da resistência que advém dos movimentos filosóficos e sociais.

As coisas mudam, mas não há razão para... O que vai substituir a filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que não precisamos mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo bem, os idiotas querem acabar com a filosofia. Quem vai criar conceitos? A informática? São os publicitários? Eles usam a palavra conceito. Tudo bem, teremos os conceitos publicitários, conceitos de uma grande marca de macarrão. Não será um grande rival para a filosofia. Acho que a palavra conceito não é usada da mesma maneira. Mas hoje é a publicidade que se apresenta como rival da filosofia porque eles dizem que são eles que inventam conceitos. (...) O que eles chamam de conceitos nos faz rir. Não devemos nos preocupar.


O abecedário também ajuda a tirar de seus leitores a idéia de que Deleuze, por estar muito próximo de algumas figuras miticamente revolucionárias, também tivesse tido alguma militância político-partidária. Ledo engano. Muito embora tenha-se colocado por toda a sua vida professoral como um indivíduo de esquerda, Deleuze não foi um militante, carregador de piano, colador de panfletos em postes. Pegar em armas, então, nem em sonhos. É possível, e nada desprezível, que a sua origem burguesa o tenha afastado dos quadros do partido comunista francês onde parte de seus companheiros militaram. Sobre este assunto, com um certo ar de deboche e uma justificativa pouco aceitável para um intelectual que se achava de esquerda, é ele mesmo quem esclarece:


Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar dessas reuniões o tempo todo. E era a época do “Apelo de Estocolmo”. Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas (...) Ainda por cima tinha-se que vender o jornal L’Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.


Compreende-se, portanto, que a sua decisão de manter-se independente politicamente (ou mais próximo do movimento anarquista), foi determinante para a composição de seu desfiladeiro de ousadias conceituais, todo o tempo a reafirmar, fazendo um contraponto à própria visão da esquerda, que as categorias, as classes e para ser mais exato, o conceito de minorias e o seu modo de identificação política, atrapalha o movimento de emancipação dessas mesmas categorias. É como se, de uma hora para outra, não existissem mais os podres poderes e com eles desaparecessem também índios, e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes. Com a licença de Caetano, adeus carnaval!


Como se tudo isso não bastasse para colocar na vitrine da filosofia um pensador de sua estirpe, ao dissertar sobre o papel das esquerdas para satisfação da letra G, se esmera em desqualificar todas as construções conceituais produzindo uma enxurrada destruidora da velha dicotomia e das lutas nas quais perderam a vida milhões de pessoas em todo o mundo e ainda serve para marcar posições entre aqueles que acham que a possibilidade de existência de um mundo mais justo depende da pavimentação dos caminhos dos mais fracos e os que acham que cada indivíduo é, em um mundo globalizado e democrático, o responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Sobre este assunto Deleuze é pontual: as revoluções não deram em nada.


Também no afã de dar à jurisprudência um valor para além do que ela, hoje, representa no campo do direito e livre das amarras da escrita, Deleuze é ainda mais enfático e polêmico ao desqualificar a luta contemporânea pelos direitos humanos. Faz uma geléia pondo todos no mesmo plano, como se as centenas de militantes que zelam pela alegria do mundo (não importando para efeito deste tema se o sujeito é de direita ou de esquerda) não estivessem convencidos de que é importante que nos mantenhamos à espreita, em uma vigília constante para que os desatinos dos poderes autorizados não repitam as atrocidades com as quais tivemos de conviver em passado recente. Tento não opinar, mas como brasileiro é impossível imaginar que a sociedade possa reequilibra-se sem a ajuda dessas organizações.


Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste.


Além da capacidade de síntese para definir o indizível, Deleuze é brilhante ao criar alternativas, conceitos totalmente abertos, para aqueles que escrevem sobre as trajetórias da humanidade. O escriba enriquece a discussão ao se colocar como um mediador que resvala para a anarquia, mas sabe reerguer-se com o seu coletivo de conceitos advindos de um plano de imanência infinito que funciona como uma fonte que mata a sede dos que desejam compreendê-lo ao recriar conceitos adormecidos e de certa forma desprezados ou esquecidos no banco de dados da filosofia. Somente para o auxílio dos educadores em suas lutas cotidianas estão postos em dois ou três livros os conceitos de rizoma, território, imanência e própria natureza do conceito contribuindo sobremaneira para que compreendamos de que forma o conhecimento se constrói, de que forma essas conexões vão se atar às nossas estruturas inatas, congênitas ou arquitetadas no segundo útero com a ajuda de várias pessoas, a maioria componente de nosso grupo familiar mais imediato. Não existe gênese sem estrutura e nem estrutura sem gênese é o que nos lembra Jean Piaget. O conhecimento é fruto de um entrelaçar perpétuo, de uma simbiose eterna entre o homem e o meio.


Como podemos perceber, as doces contradições ficam por conta das desqualificações das lutas e das constituições identitárias que, na visão dos sofredores de latino-américa, muitas vezes são necessárias à sobrevivência de um grupo minoritário qualquer. As maiores discordâncias ficam no campo sócio-político. Deleuze sequer admite a existência das minorias. Diz, com ares de dono da verdade, que todos nascem minorias. Mas isso, possivelmente, também seja fruto de uma trajetória acadêmica que, em nenhum momento, foi abalada pelos cascos das cavalarias que garantiam a tranqüilidade do estado. Deleuze soube distanciar-se das turbulências das décadas de 60 e 70, mesmo quando fala sobre elas o faz como espectador de seu tempo e não como apedrejador da militância remunerada pelo poder. Nada desmerecedor nesta forma de posicionar-se. Nada desabonador para um filósofo que manteve a coerência entre suas formas de ver o mundo e o respeito à tradição que chegava aos seus ouvidos como ecos de família a fazer contrapontos e a justificar a violência do estado como um mal necessário visando à garantia da ordem pública.


Quando digo era uma família de direita... Eu me lembro bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas devem restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que maio de 1968.


Deleuze vivenciou, como mostra o texto acima e como ele mesmo gosta de repetir, o conflito entre a sua formação acadêmica e a formação de seu caráter que, como o de todos nós, começa na mais tenra idade, e permanece como laços muito difíceis de serem desatados.
Além da amizade, quase matrimonial, com Guattari, Deleuze confessa o seu desapontamento pelo fato de não ter se aproximado mais de Foucault.


Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim...


E se as vaidades ou os medos conspiraram para os encontros, ficaram as aproximações nos escritos, na virtude do acontecimento, um fenômeno visto por Deleuze como algo que
pode devorar regimentos e estatutos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida acontecem e coexistem com os acidentes da vida correspondente.
Isto nos ajuda a compreender as surpresas do cotidiano da escola engessado pela forma como a instituição é conduzida, atrelada aos planos homogeneizantes como se fosse possível fazer acontecer os currículos construídos para o atendimento a grupos distintos, mas que são apresentados com a mesma roupagem, com os mesmos conteúdos e as mesmas formas de aprender e ensinar. Sobre este mesmo conceito, Foucault (1971:145-172), tem proposição semelhante:


...é preciso entendê-lo (o acontecimento) não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório singular do acontecimento. (Foucault, 1971, p.145-172)

No esgotamento do espaço concedido devo registrar a minha felicidade por mais um encontro, desta feita, patrocinado pelos companheiros do PROPED-UERJ. Em Deleuze estão as marcas da filosofia em sua forma mais clássica. Vivemos um mundo novo, atravessado por ideologias bem distantes da simplória distinção que havia entre realistas e idealistas. Por isso é mais fácil cobrar dos que escrevem, numa comparação com os que somente falam, posicionamentos ideológicos para o atendimento às várias correntes derivadas do tronco original da filosofia clássica. Mas Deleuze não escreveu para a satisfação dos grupos. Deleuze foi um criador, um artista que sabia que a sua obra não agradará a todos. Essas são as principais características da filosofia hodierna e das formas de expressão que não foram pensados para o deleite de todos.


sábado, 23 de abril de 2011

DOM QUIXOTE PROIBIDO






A matéria do jornal Extra, tratando da confusão sobre leitura imprópria na Escola Municipal Benedito Ottoni, reveste-se de interesse, mas conforta-me porque sei que este incidente não tem a mínima chance de transformar-se em epidemia. Imaginem se, em todas as escolas brasileiras de ensino fundamental, pudesse ser colocado em permanente vigília um professor-leitor-censor a dizer para as crianças que determinado tipo de leitura não se adéqua à sua frágil compreensão. O movimento de repreensão à professora, feito pela mãe, e que de alguma forma recebeu o apoio do delegado, não terá repercussão alguma no seio de uma sociedade, em cuja cesta de preocupações não sobra espaço para os palavrões falados ou escritos e que passeiam docemente pelas bocas da meninada do ensino fundamental.

Para o bem ou para o mal, os palavrões que ruborizavam as faces da infância não encabulam mais a ninguém. Estamos na era da pornografia aberta, um tempo novo que exige dos pais mais atenção para o comportamento de seus filhos, mas foi a própria sociedade que exigiu o fim de qualquer tipo de censura. Para cada produto que chega à sociedade de idade mais tenra existe uma regulamentação seguindo a bula do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas nada do que trazem os livros merece vigilância. Se o menino interessou-se pela leitura podem ficar tranqüilos os seus pais: ele tem plena capacidade de entender (se lhe fosse melhor explicado) o significado do texto literário considerado chulo por sua mãe. O que a mim parece, pelo menos é o deixa entrever a fala do aluno, é que a mãe ficou mais chocada do que o filho e como não tinha palavras para explicar como se realiza a relação sexual entre dois homens, preferiu recorrer ao delegado que também não é preparado para questões dessa natureza.

Nos últimos dez anos, o Governo Federal vem abarrotando as bibliotecas escolares com livros paradidáticos cheios de belos palavrões. Estão hoje na biblioteca das escolas: Chico Buarque com sua língua solta, Vinícius com seus poemas eróticos, Gilberto Freire com suas histórias e desenhos de zoofilia, Jorge Amado com suas histórias de amor, sexo e traição, tudo, porém, muito distante daquilo que se pudesse chamar de pornografia.

A Prefeitura do Rio faz uma censura prévia, mas os livros que ela considera adequados apenas para leitura de adultos, ficam rolando pelas bibliotecas escolares e para nossa felicidade, de vez em quando tem menino lendo O Leite Derramado de Buarque de Holanda.
Não li o livro promotor do furdunço, mas ele faz parte de uma série de releituras encomendadas pela Rocco a vários autores. O Dom Quixote hodierno de Paula Mastroberti foi o primeiro a levar pancadas e isto pode impedir de que outros livros da interessante coleção chegue às escolas, isto sim um prejuízo imenso para alunos e professores e toda a sociedade letrada. E para aqueles que não vivem o cotidiano das escolas públicas brasileiras ou escolas particulares não confessionais, é preciso dizer que nenhum livro escrito pelos autores acima citados possui a repertório de palavrões ditos pelas crianças de uma turma de sexto ano.

Este fenômeno ainda é objeto de estudo, mas trata-se do grupamento escolar que mais fala palavrões e desafia o corpo docente. É possível que a sede de conhecimento com a chegada em uma nova escola ou a interação com meninos e meninas de idade mais avançada, expliquem uma parte desse desejo de que, aos gritos ou aos pés de orelha, sejam proferidas arrepiantes palavras que provavelmente não estão contidas no livro juvenil de Paula Mastroberti. Cabe a pais e professores orientá-los, não com cinismo da sociedade pequeno-burguesa, mas com a sinceridade que lhes farão perceber que algumas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar. Quanto aos livros, qualquer tipo de censura viola o acordo democrático feito pela sociedade brasileira depois de 25 anos de ditadura militar. Não é a primeira vez que isto acontece, mas a mãe do menino curioso, o delegado e os profissionais que falam em linguagem inadequada, precisam compreender que vivemos outro momento no qual a palavra censura está sempre fora de moda e lugar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

ESCOLA ABERTA NÃO É SINÔNIMO DE ESCOLA ABANDONADA



No auge das emoções, por conta da tragédia de Realengo, o prefeito Eduardo Paes, diante de vários repórteres amontoados naquele simulacro de quadra de esportes, disse que a escola, apesar de tudo, continuaria aberta. Naquele mesmo momento, possivelmente sem dar-se conta, Paes fazia uso de um conceito que foi criado pelos setores progressistas que militam na educação e que, pouco a pouco, também por conta dos vícios de nossa democracia juvenil, acabou incorporando os adjetivos representativos dos desleixos das esferas de poder com o equipamento público.

O certo é que, tempos depois, passamos a lutar para que todos os serviços, e não somente a escola, devessem permanecer abertos às críticas, à escolha por via democrática de seus dirigentes e ao atendimento da população: os hospitais, os postos de saúde de dia e de noite e nos fins de semana, o judiciário em momentos acessíveis a toda a população, a defesa civil, os gabinetes do Prefeito e do Governador, bem como todas as secretarias que de alguma forma servem ao povo, precisavam dia e noite estar abertas para o atendimento aos que pagam religiosamente os seus impostos, mas o aberta, como adjetivo, sobrou apenas para a escola.

Somente a escola pública permaneceu aberta das 6h, em alguns casos por conta do ensino noturno, até as 23h; e também por conta de alguns projetos educativos ou de lazer, em algumas unidades, aos sábados, domingos e feriados. Para que isso fosse possível, o governo federal disponibilizou uma verba considerável através de seus programas para atendimento aos menos favorecidos. É claro que os defensores do governo municipal vão dizer que os hospitais estão abertos dia e noite. Sim, mas com uma qualidade de atendimento muito longe daquilo que a população exige e reclama. A outra reivindicação ligada ao campo da saúde – postos abertos 24 horas – perdeu força quando a prefeitura, aproveitando-se da bandeira política de Sérgio Cabral, jogou toda a responsabilidade do atendimento primário para os espaços de campanha superlotados (UPAs) e sem as especialidades médicas necessárias para um atendimento de emergência digno, para aqueles que mais necessitam dos serviços públicos.

Voltando à questão da escola pública da capital cultural do país, é preciso dizer que a sua estrutura de pessoal para atendimento a pais e alunos deixa muito a desejar. E é bom que a discussão seja feita a partir do estudo de uma escola que pode ser considerada como um dos exemplares de maior visibilidade na paisagem suburbana carioca, quando o tema é qualidade do prédio escolar. Evitei usar a palavra arquitetura pela indecência estética de suas linhas e pelo desconforto que escolas desse tipo causam a alunos e professores. Prédios iguais ao da Escola Municipal Tasso da Silveira, o local da tragédia que arrebentou a alma já dolorida dos cariocas e do povo brasileiro de uma maneira geral, não deveriam mais ser utilizados como escolas.
As crianças acham bonito aquele caixote acinzentado porque criança tem a alma generosa, mas o prédio é feio e hostil em tudo. Em suas formas, em suas cores, em seu tratamento acústico, em seus materiais de acabamento, em suas quadras de esportes, em seus locais de asseio e alimentação, em seus locais de lazer e reuniões hoje quase todos transformados em acaloradas salas de aulas no último piso, que, pelo projeto original, deveria ser um auditório, em suas calçadas ásperas, na inexistência de tratamento paisagístico, no derrubamento das árvores fruto da ignorância de muitos diretores e da permissividade da prefeitura que não pune os devastadores.

Nada se salva em um projeto sem pai (ou cujo pai tem vergonha de aparecer) feito nos duros tempos da ditadura. Os governos precisavam erguer, às pressas, um monte de escolas para o atendimento da demanda surgida com a elasticidade do ensino fundamental pretendida pela lei 5692. Exemplares piores do que as escolas-caixote de Negrão de Lima e Faria Lima, somente temos conhecimento das escolas-de-papelão de Carlos Lacerda, montadas poucos anos antes, para as ambições proselitistas do fanfarrão udenista.

A essa altura, o leitor deve estar perguntando: mas o que tem a ver a arquitetura do prédio com a tragédia de Realengo. Isoladamente, nada. Escrevi este artigo para dizer que são muitas coisas ruins juntas e que desse coletivo de erros não podem sair muitas coisas interessantes, senão vejamos: escola aberta, não é sinônimo de escola com portões escancarados, sem ninguém para interrogar aos estranhos que entram, aonde desejam ir. O termo escola aberta foi criado para definir uma posição ideológica na qual os pais teriam acesso total à vida escolar de seus filhos. Assim sendo, escola participativa seria o seu melhor sinônimo. No entanto, ao perder-se o significado político do termo muita gente desqualificada para funções do magistério achou também que poderia fazer parte dessa fragilizada estrutura dando a impressão, especialmente para as esferas do poder, de que tudo na escola caminhava muito bem.

Várias fórmulas que tentavam desqualificar o trabalho dos profissionais da educação foram testadas. Chegou-se, mais recentemente, a pensar em colocar estagiários de engenharia para dar aulas de matemática visando à melhoria do rendimento dos alunos. Um desses grupos, apoiado pela Rede Globo de Televisão com o nome de Amigos da Escola, contribuiu para que a prefeitura fizesse um enxugamento na máquina diretiva, pouco visto, sequer, na maioria dos municípios empobrecidos do Estado do Rio de janeiro.

Apenas à guisa de exemplo, a Escola Tasso da Silveira tem o mesmo número de salas e o mesmo número aproximado de alunos (1000 em dois turnos ou se quisermos considerar os três turnos, 1500) da escola em que trabalho, no Município de Angra dos Reis. A minha escola tem um corpo administrativo que conta com 4 diretores, 3 ou 4 pedagogos, 4 ou 5 auxiliares de secretaria, 2 ou 3 inspetores, 1 guarda patrimonial, 2 ou 3 responsáveis pela sala de leitura, 5 ou 6 serventes e uma cozinha terceirizada que funciona de acordo com as diretrizes contratuais. E, ainda assim, a quantidade de profissionais é objeto de constantes reclamações por parte da comunidade escolar. Já a Escola Municipal Tasso da Silveira e as demais similares da rede carioca, se a memória a mim não trai, pois já me afastei da rede do Rio há muito tempo, dispõe, para o mesmo número de alunos, do seguinte corpo funcional: 1 diretor geral, 1 coordenador pedagógico que não precisa de formação acadêmica, 4 ou 5 auxiliares de secretaria, 1 ou 2 responsáveis pela sala de leitura, o pessoal da merenda, terceirizado ou não e 2 ou 3 serventes.

Fazendo as contas, deixando-se de fora o pessoal da cozinha e tomando-se sempre os números maiores, temos em Angra dos Reis, para escola até 1500 alunos, uma equipe com 22 membros. No município do Rio de Janeiro, seguindo os mesmo princípios, 11. Para que sejamos bastante generosos, atualmente, o número de funcionários que trabalha em cada uma dessas escolas, no Rio de Janeiro, é pelo menos a metade dos que trabalham em uma escola do mesmo porte em Angra dos Reis. Agora procurem comparar a relação alunos/funcionários de uma escola pública do Rio de Janeiro com a estrutura administrativa de um colégio da classe dominante similar ao São Bento ou ao Santo Inácio e veremos como é fácil compreender porque as tragédias ocorrem com mais freqüência nas instituições públicas.

Para além dessas discussões, é preciso ainda que se diga que quando se construiu a premissa de que a escola fosse aberta à comunidade ninguém pensou que ela fosse se transformar no mercado persa que é nos dias de hoje. Todo mundo acha que deve resolver os seus problemas financeiros nas salas-dos-professores e nas salas-dos-alunos-empobrecidos. É como se todos pensassem que daquelas carteiras de profissionais mal pagos e dos bolsos de nossos alunos empobrecidos sobrassem sempre alguns trocados. E são tantos os que vão vender quinquilharias nas escolas que aos poucos vamos perdendo a capacidade de nos indignar. Entram os vendedores de livros, de cursos de inglês, de cama e mesa, de roupas íntimas, etc. Todos muitos parecidos com o matador de realengo, bem vestidos (as), com uma bolsa de cheia de produtos que podem ser bolas ou balas, para chupar ou para matar. Uma verdadeira feirinha de Itaipava se forma nas salas dos professores sempre que se aproxima o final do mês, apesar das inúmeras portarias que foram publicadas proibindo o comércio de quaisquer tipos de produtos. Mas essa não é a escola aberta que queríamos construir quando começaram a soprar os primeiros ares da democracia. Está perdoado o prefeito que naquela época, devido a sua tenra idade, mal sabia o que era essa coisa chamada escola ou o significado conceitual da palavra aberta criado nos meandros da pedagogia. Hoje talvez ele já saiba que uma escola aberta não precisa viver com o seu portão escancarado!

Concordamos com todos aqueles que acham que a escola não deva se transformar em uma ilha de medos. Sabemos que os objetivos de uma escola não são os mesmos de um presídio. No entanto, com os vazios que temos hoje, precisamos redobrar os cuidados. Não podemos deixar que pais e mães entrem na escola para agredir os seus próprios filhos. Não podemos deixar que pais, mães e pessoas distantes entrem na escola para agredir alunos e professores como vem ocorrendo com freqüência no Rio de Janeiro, em Angra dos Reis ou qualquer outro município. Não se pode permitir que as tensões entre alunos e professores cheguem às vias-de-fato e aos crimes de morte, como os que, ora, vêm ocorrendo em várias escolas brasileiras.

Concordamos que a escola deva ser uma instituição aberta, mas ela mesma deve zelar pela segurança de seus membros interrogando aos que a ela se dirigem para a prática de crimes ou não. É necessário que alguém tenha a função de perguntar aos estranhos o que fazem ali, o que desejam, aonde vão, com quem realmente desejam falar. O problema é que nem sempre a escola tem pessoal disponível para isso e, quando menos esperamos, pessoas que nada têm a ver com o cotidiano pedagógico, estão nas portas de nossas salas de aulas, com as tais bolsas que servem para inumeráveis fins, inclusive, para os crimes que se desejam cometer. As leis estão escritas. Basta cumpri-las!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Intestino preguiçoso: um mal que o PDDE poderia curar


Cresce, em progressão geométrica, o número de mulheres jovens que já não sentem prazer em sair de casa para longos passeios porque não conseguem resolver os seus problemas relacionados a males como prisão de ventre, constipação ou intestino preguiçoso. Cada um de nós tem um amigo ou um parente próximo que sofre com algo aparentemente simples de resolver. Ora, se existem tantos tipos de laxantes por que se preocupar com doença tão comum? O problema está exatamente no uso contínuo desses medicamentos para um mal que poderia ser evitado. Este tipo de remédio, em longo prazo, vai se tornar prejudicial à saúde do usuário que faz uso abusivo de suas propriedades.

É importante notar que, a maioria dos casos, são de mulheres que ainda jovens adquiriram o hábito de não ir ao banheiro fora de casa porque os sanitários que elas conheceram na infância e na adolescência, principalmente nas escolas públicas, eram de péssima qualidade. Quem nos ajuda a entender melhor o problema é o Dr. Roberto de Carvalho Pinto, gastroenterologista da UNIFEST: Em 90% dos casos de prisão de ventre são considerados constipações funcionais. Isso significa que eles não estão relacionados a nenhum tipo de distúrbio orgânico, mas a maus hábitos. Algumas vezes, a alimentação é equilibrada, mas a distância do banheiro de casa impede o intestino de funcionar, um reflexo psicológico muito comum entre as mulheres e perfeitamente contornável desde que, aparecendo a vontade, não haja resistência. Se o reflexo do intestino não é respeitado, as fezes acumulam. Enquanto isso, o intestino vai absorvendo a água contida nelas, dificultando a eliminação posterior. (HTTP://www.laçosdesolidariedade.org.)

Pinto tem razão, mas resta convencer a meninos e meninas que façam uso de banheiros tão imundos e inadequados para a satisfação de suas necessidades fisiológicas, principalmente quando é preciso sentar-se em um vaso sem o anel higiênico que normalmente deveria ficar entre a louça e as nádegas de seus usuários, quando os mecanismos de descarga nem sempre funcionam como deveriam ou o que é o mais doloroso para a escola pública da sexta economia mundial: quando o papel higiênico é dado pela diretora do estabelecimento aos pedaços que ficam em uma caixa à vista de todos, normalmente nos balcões das secretarias escolares. Nem os pais percebem a perversidade que fazem com os seus filhos. Todos acham isso muito natural, inclusive as mulheres, professoras, que deveriam lutar por melhores condições de higiene e saúde para as suas pequenas irmãs siderais.

O abandono de tão importante espaço tem uma explicação simplista, mas vingativa: não consertamos porque foram eles mesmos que quebraram o vaso, que quebraram o mictório, que picharam as paredes com as siglas do comando vermelho e, a mais corriqueira, que entupiram o vaso com o rolo de papel higiênico.

Sem preocupar-se com essas picuinhas, o Governo Federal, cansado de ouvir reclamações das direções escolares sobre a falta de dinheiro até para comprar parafusos, resolveu, há mais 15 anos, criar um programa chamado PDDE – Programa Dinheiro Direto na Escola, que literalmente põe, nas mãos das direções escolares, dinheiro para pequenas e médias emergências, cerca de R$ 10.000,00 por ano, mas dependendo da competência da escola para elaborar projetos esse montante pode aumentar muito. Tem escola recebendo mais de R$ 100.000,00 em função do número de projetos que é capaz de apresentar e desenvolver.



Vaso sanitário de uma escola pública

Não era exatamente com o que sonhávamos para a educação, mas esse dinheiro serve para melhorar os banheiros das escolas, os bebedouros (incluindo a avaliação da água que as crianças bebem), a troca dos pratos de plástico azul, condenados pela Organização Mundial de Saúde, o fornecimento de talheres de acordo com a faixa etária das crianças, bancos e mesas para todos na hora das refeições e outras pequenas melhorias capazes de fazer da escola um espaço mais prazeroso e, por conseguinte, mais produtivo. É também o que pensam os autores do projeto que, logo no seu segundo parágrafo, escreveram: O programa engloba várias ações e objetiva a melhora da infraestrutura física e pedagógica das escolas e o reforço da autogestão escolar nos planos financeiros, administrativo e didático, contribuindo para elevar os índices de desempenho na educação básica.


Mais recentemente, contrariando os objetivos iniciais do projeto, seus artífices de agora resolveram permitir que as direções fizessem poupança com as sobras do dinheiro mandado a cada ano. Mais explicitamente, as sobras de um determinado ano podem ser gastas em outro. Esta decisão, repleta de boas intenções, deu às escolas um prazo excessivamente elástico para o emprego das verbas, de tal modo que já tem escola deixando de fazer uso do dinheiro para montar uma poupança irresponsável privando as crianças de pequenos direitos enquanto as verbas que poderiam realizá-los dormem nas contas dos bancos públicos que, dentre outras coisas, alimenta a corrupção nacional. E não são apenas sobras. Algumas instituições, alegando dificuldades nas compras, sequer mexem no dinheiro mandado pelo governo federal.


Resolvi escrever sobre o tema depois de trabalhar em várias escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro e dos municípios de Angra dos Reis e do Rio de Janeiro. Em todas elas, os mesmos problemas relativos à higiene básica dos espaços destinados aos alunos. No bojo dessas discussões uma professora disse-me em tom de brincadeira, mas com alguma lógica, que os banheiros dos alunos e a água que eles bebem somente melhorariam quanto professores e alunos fizessem uso dos mesmos equipamentos. Não sei se isso resolveria, porque a água que bebemos já é a mesma e nada melhorou, mas não custa experimentar.




Caixa de descarga do vaso anterior
As desculpas das direções, majoritariamente mulheres, para o desleixo com espaços escolares tão importantes, contrariam os princípios da boa pedagogia que vê a escola como um espaço educativo globalizante. Ao confinar os objetos que causam incômodos e dá mais trabalho aos funcionários, a escola perde a oportunidade de ensinar àqueles que não tiveram oportunidade de aprender, em seus lares, os hábitos básicos de higiene. E se não conseguimos fazer com que meninos e meninas desenvolvam esta forma de consciência, para que uma grade enriquecida de conteúdos científicos? Para que aqueles monstruosos livros que tratam de temas como reprodução humana e aparelhos excretores, se a escola não é capaz de dizer para o menino ou a menina que o rolo de papel higiênico não foi feito para ser jogado dentro do vaso sanitário?
Não estou fazendo aqui uma defesa simplória de que o papel da escola seja o de também tomar para si as responsabilidades que cabem aos pais, mas ela também não pode confinar o papel que dá, principalmente, às meninas tranqüilidade e evita o desconforto de ir à secretaria pedir a uma pessoa (que para piorar, pode ser do sexo masculino) um pedaço de papel para sua higiene mais íntima. Cada um de nós sabe o quão vexatório é este gesto. Eu, particularmente, nunca me submeti à infame prática. Nas horas de intensa necessidade quem sofria era o caderno. Quantas folhas foram utilizadas para a higiene de meu tempo de escola?

Algumas crianças se valem desse e de outros expedientes, mas o mais comum é o condicionamento do intestino para que ele somente se manifeste nos horários em que o indivíduo possa estar em casa. No entanto, resta um problema: como os sensores neuro-fisiológicos não conseguem distinguir a escola de outros prédios, de outros lugares, cresce a legião de entes-vasófobos, seres portadores de uma nova doença psíquica que ataca àqueles que têm medo dos vasos sanitários não pertencentes à sua própria casa. Não usem esse termo horrível porque ele não existe. Criei porque não sei ainda como denominar as pessoas que guardam, por até cinco dias, os excrementos que deveriam expelir, em suas barrigas endurecidas.


Papeleira sempre distante do papel higiênico

Outros blogs médicos, que cuidam de temas correlatos, referem-se à doença como originada de um hábito compulsivo causado por algum tipo de repulsa a ambientes muito sujos. Para atenuar o problema, os responsáveis pela maioria dos sanitários públicos americanos eliminaram as cestas de papel que ficavam ao lado dos vasos sanitários. Mas o problema não é da cesta. Ele foi gestado em idade mais tenra, em cada um de nós, possivelmente lá pelos idos da pré-escola.
Também não quero cometer exageros achando que tudo é culpa do papel higiênico, mas uma boa parte das pessoas que adquiriu essa péssima mania foi aluno ou aluna da escola pública. Meninas e meninos, há anos recebendo conselhos de seus indefesos pais para que não usem o banheiro morfético e repugnante da escola de ensino fundamental, vão aprendendo, também, a não ir ao banheiro das casas dos amigos, da igreja, das pousadas, dos hotéis.


Sabemos que existem outras causas para o medo dos vasos dos hotéis (neste caso o número de estrelas não tem a mínima importância), mas devemos considerar que a falta do papel higiênico, para as crianças em plena formação da personalidade, deixa a sua parcela de contribuição. É grande o número de pessoas que não usa vasos sanitários estranhos e a comunidade vasófoba não para de crescer. O ato repulsivo, que de início era uma simples postergação do momento em que a pessoa deveria evacuar, vai se tornando habitual e gradativamente assumindo ares de doença, agora com uma infinidade de nomes, causas e formas de tratamento.


Essas considerações servem também para alertar as escolas sobre a necessidade de manter um estoque razoável de absorventes íntimos. A mulher foi buscar, na última metade do século XX, o que lhe foi negado na primeira. Em várias instituições de ensino o número de mulheres já é maior do que o de homens. Assim sendo, devemos considerar também que aumentou sensivelmente a probabilidade de que várias primeiras menstruações aconteçam dentro da escola que deve acolher a nossa nova mulher com todo o aconchego das menarcas tribais quando do sublime e indescritível milagre do aparecimento de uma nova produtora de criaturas. Ademais, não fica muito bem para a escola deixar que a menina vá declinar o seu desapontamento no portão da instituição e pedir o seu absorvente primeiro ao pipoqueiro que, cotidianamente, ocupa um pedaço da calçada externa, bem em frente ao portão principal.



Aqui, há sete anos, existia um mictório

Para além das questões factuais, poderíamos elencar uma série de procedimentos capazes de solucionar o problema, mas os mais eficazes ainda são as perenes formas de conscientização. No entanto, em vários projetos de escola, precisamos de soluções mais duras. Chegamos, em uma delas, a criar um plantão de banheiro e a organizar uma escala semanal de lavagem dos sanitários, pelos alunos, com a anuência dos pais. O que não podemos é retirar os rolos de papel sanitário como uma represália ao proposital ato do entupimento. Isto dá ao incauto (a) o prazer que ele (a) precisava para seguir cometendo atos de vandalismo na solidão das casinhas sanitárias. Para as meninas, somente o ato de dar a elas a oportunidade de decorar o seu próprio banheiro com flores, sabonetes, toalheiros e espelhos, faz com se sintam mais responsáveis pela manutenção dos novos objetos. Da mesma forma, a ampliação do número de mictórios, a instalação de chuveiros e de vasos sanitários, e a colocação de novos espelhos, podem funcionar como uma premiação pelo bom comportamento e pelo zelo com os materiais de higiene postos à disposição de todos. É para isso e para outras pequenas, mas importantes coisas, que o governo resolveu mandar o dinheiro direto para escolas.

Mais uma vez é preciso considerar que o meu costume de escrever sempre sobre os problemas da escola pública deve-se à facilidade de dissertar sobre algo que para mim é muito pautável. Sempre fui professor de escola pública de ensino fundamental e médio. Nem a curta carreira universitária afastou-me da meninada que, ainda em minha adolescência, escolhi para ensinar e que ainda hoje funciona como principal fonte de inspiração das coisas que ao longo desses trinta anos venho escrevendo. Já a escola particular, pode até cometer falhas como as inúmeras citadas neste artigo, mas as cobranças dos pais pelo zelo com os seus rebentos, por óbvias razões, é um pouco maior: Estou pagando para que o meu filho seja bem tratado!

O que está implícito nesta forma equivocada de educar é a procura por caminhos menos tortuosos. É muito mais simples desaparecer com os objetos que dão trabalho ao corpo profissional da escola. Suprimem-se as laranjas porque as crianças jogam as cascas umas nas outras. Suprimem-se as tintas pela lambança que fazem sobre as mesas. Suprimem-se os instrumentos musicais porque eles são barulhentos demais. Suprimem-se os brinquedos porque, com eles à vista, os alunos não pensam em outra coisa. Mais recentemente começaram a colocar cadeados nos balanços dos playgrounds infantis e a deitar nos armários com chaves, as cordas para pular que a molecada usa para queimar as energias consumidas na hora do recreio. Ainda assim trata-se de um ato que não pode ser atribuído somente às direções escolares. Trata-se da prática que emerge de uma visão coletiva e que, na maioria das vezes, acontece com a concordância dos próprios pais. Algumas formas causam menos estragos; outras, como a retirada do papel higiênico do alcance das crianças, seguem produzindo danos irreversíveis aos corpos físicos e psíquicos da criançada que ocupa os bancos da escola pública brasileira. Esta não é uma questão de fácil solução, mas ainda há tempo para mudar e o PDDE foi criado para este fim.